“Temos um estuprador neste prédio!”
Gritando e exibindo faixas, manifestantes promoveram neste mês uma cena incomum em frente ao Royal Festival Hall, em Londres, casa de espetáculos mais conhecida por grandes eventos culturais do que pela controvérsia.
O protesto foi motivado pelo evento South of Forgiveness, uma conversa pública entre a islandesa Thordis Elva e o australiano Tom Stranger, o homem que anos atrás a estuprou.
Diante de pressões de grupos de defesa dos direitos da mulher, a discussão havia sido inicialmente excluída do programa de um festival na capital britânica sobre o poder da mulher. Mas os organizadores acabaram apenas mudando a data do evento, sob o argumento de que o debate era “importante demais para ser silenciado”.
“O estupro é um assunto crucial e precisamos mudar um pouco a discussão em torno dele, que muito frequentemente se foca mais nas vítimas do que nos agressores”, disse, em comunicado oficial, a diretora artística do Southbank Centre (centro que abriga o Royal Festival Hall), Jude Kelly.
Mas a decisão não foi aprovada pelos manifestantes, que incluíam vítimas de estupros como Diane Langford, de 75 anos. “Um estuprador está aqui, lucrando com seu crime”, disse ela à BBC.
Thordis Elva tinha 16 anos quando foi violentada por Tom Stranger, que tinha 18 anos à época. O incidente ocorreu em 1996, após uma festa natalina em Reykjavik, capital da Islândia. Eles namoravam havia apenas um mês e tinham bebido rum. Thordis passou mal durante a festa e Stranger a levou para casa.
A moça não denunciou o estupro. “Eu tinha 16 anos e estava apaixonada pela primeira vez na vida. Fiquei machucada e chorei muito por semanas, mas tudo era muito confuso para mim. Tom era meu namorado, não um lunático. E o estupro ocorreu na minha cama, não em uma viela. Quando finalmente concluí que havia sido estuprada, Tom já tinha voltado para a Austrália, ao final de seu programa de intercâmbio”, conta.
Palestras
Nove anos mais tarde, ela decidiu entrar em contato com Stranger, escrevendo uma carta. Para a surpresa dela, o australiano respondeu com uma confissão e uma oferta de fazer “o que fosse necessário”.
Pela legislação islandesa, o crime já tinha prescrito, então os dois resolveram escrever um livro juntos para relatar o ocorrido.
A obra chamou a atenção dos organizadores das conferências TED, uma rede de eventos sobre tecnologia, entretenimento e design ao redor do mundo. Uma palestra da dupla no evento, realizada em outubro do ano passado, foi assistida por mais de 2,7 milhões de pessoas.
A transcrição da palestra chama a atenção pela franqueza do diálogo entre agressor e vítima. Stranger conta que sufocou deliberadamente as memórias do estupro e que dias depois da agressão tinha plena noção de que havia feito “algo muito errado”.
“Repudiei o ato mesmo quando o cometia. Mas contei para mim mesmo uma mentira, a de que havia sido sexo, não estupro. Negligenciei o imenso trauma que causei a Thordis. E a mentira me deixou com uma culpa atroz”, diz.
Críticas
“Por muito tempo a responsabilidade do estupro tem sido atribuída às vítimas. Com muita frequência, a negação e o escapismo deixam todas as partes muito longe da verdade. Se você assume a responsabilidade, algo surpreendente pode acontecer: quando admiti o estupro, a pena que sentia de mim mesmo se transformou na aceitação de que tinha machucado uma pessoa maravilhosa e que sou parte de um enorme e chocante grupo de homens que cometeram violência sexual contra seus parceiros”, diz o australiano.
Desde então, Thordis e Stranger participam de eventos ao redor do mundo. Em Londres, porém, enfrentaram a ira de quem viu na aparição da dupla algo que poderia despertar traumas em vítimas de estupro. Uma petição online, endereçada ao Southbank Centre, argumentou que o evento poderia encorajar a normalização da violência sexual em vez de discutir responsabilidades e causas.
Thordis, que atualmente vive na Suécia com o marido e um filho, diz não estar fazendo recomendações para outras vítimas, mas tentando enfatizar a responsabilidade do agressor por meio do que chama de “desmonstrificação” de perpetradores.
“A demonização dos agressores pela mídia atrapalhou minha recuperação. O fato de Tom não ser um monstro e, sim, uma pessoa que tomou uma decisão terrível tornou ainda mais difícil para mim reconhecer seu crime. Não quero receitar uma fórmula às pessoas. Ninguém tem o direito de dizer a uma vítima de estupro como lidar com a dor. Mas a violência sexual não pode ser tratada apenas como assunto feminino. Homens cometem a maioria dos ataques, mas suas vozes não estão representadas proporcionalmente nessa discussão.”
“Precisamos ousar enfrentar esse problema juntos. Imaginem quanto sofrimento podemos ajudar a evitar”, afirma ela.
Stranger, porém, foi acusado de se beneficiar do sucesso do livro. A questão monetária foi levantada em vários países e houve organizações exigindo que a dupla revelasse a divisão de direitos autorais. O australiano fica com uma parte minoritária do dinheiro das vendas, mas prometeu repassá-lo a ONGs envolvidas com vítimas de violência sexual.
Precedentes
E ele não recebeu cachê para o evento de Londres. “Não estou aqui em busca de redenção”, disse Stranger no evento.
Um problema é que não existem precedentes para lidar com a situação – o australiano é um caso único de estuprador confesso que fala publicamente sobre seu crime sem ser obrigado legalmente.
Mas há vítimas e ativistas que não estão convencidos.
“Mesmo que ele não receba dinheiro, ele está se beneficiando de sua posição para ser protegido”, diz a ativista, artista e vítima de estupro Liv Wynter. Ela argumenta que estupradores não devem “receber aplausos” por admitirem o crime. E se diz preocupada com a possibilidade de a discussão encorajar outros agressores a contatar suas vítimas.
“Isso não foi encorajado no evento, mas a possibilidade de que agressores se sintam persuadidos a entrar em contato com vítimas seria algo preocupante”, diz Katie Russell, porta-voz do grupo de apoio Rape Crisis. “Se algum estuprador está considerando fazer isso, pedimos veementemente que não o faça. Ele não tem direito de tomar essa decisão”, completou.
Grupos como Rape Crisis e o Survivors Trust apontam que a abordagem de Thordis para seu processo de recuperação não deve ser aplicada a todos os casos.
“O debate é bem-vindo, mas com ressalvas, porque cada experiência (de estupro) é única”, diz Fay Maxted, do Survivors Trust.
Ativistas querem saber se Stranger também questionará outros estupradores publicamente. Em Londres, ele disse que “escutará outros homens” e que encoraja uma maior presença masculina no debate sobre violência sexual. “Reconheço que sou um indivíduo problemático, mas existe bastante interesse nessa discussão.”
A plateia do evento na capital britânica acabou elogiando sua participação.
Opiniões do público
“Ele não tentou mudar o foco da história para ele em nenhum momento”, disse Karla Williams, de 34 anos.
“Se você não ouvir os homens, como alguma coisa vai mudar?”, acrescentou Simran Chawla, de 41 anos.
Homens presentes na plateia também expressaram sua opinião. “O que eles (Thordis e Stranger) estão fazendo é extraordinário”, disse um deles. “Tom fez algo muito corajoso”, disse outro.
No entanto, um debate exclusivamente para homens organizado após o evento atraiu apenas dois participantes.
“Parece que homens ainda não estão prontos para ter essa conversa entre si”, disse um deles.