Fui convidada para um aniversário onde o acordo era que cada um levaria uma preparação para compor o cardápio da festa e eu, toda animada, já que gosto de cozinhar, fui fazer a minha parte.
Preparei tudo, olhei o relógio e marquei a hora. Bastou esticar um pouco mais o tempo, e não foi por esquecimento, apenas porque acreditei que um tiquinho a mais seria até bom e quase coloquei tudo a perder.
Esse tempo fez a receita “bater na trave” e por pouco não estraguei toda ela. O liquido secou e eu já senti foi o cheiro de fumaça que invadiu a casa indicando que havia algo errado.
Consegui desligar o fogo sem ter queimado a comida, só levei um susto e sai carregando comigo o que aconteceu, já que passei parte do dia cheirando a fumaça que se desprendeu e permaneceu impregnada em mim.
No carro, precisei abrir as janelas para diminuir o cheiro que se entranhou na pele, roupa e com o vento assanhando o cabelo, coisa tão comum na minha infância, pude abstrair o trânsito e fiquei surpresa em constatar as semelhanças que tem a cozinha com a vida real.
Quem não já se perguntou onde errou, ou lamentou uma perda numa receita ou numa situação do dia a dia? Eu perdi a conta.
Perdi a conta das noites em claro que já passei perguntado a mim mesma, sem encontrar uma resposta razoável, “onde foi que desandou?” Afinal, quando dá certo, quase nunca fazemos nenhuma reflexão, por isso esses momentos estão sempre associados a perdas ou danos.
Não bastasse a comida ser cheia de significados afetivos, capaz de nos remeter ao passado quando de uma simples exposição a uma receita da infância, tem mais essa semelhança, uma pequena mudança no tempo ou a ordem de adição dos ingredientes e alguma coisa sai diferente, às vezes errada.
Quando faço uma reflexão é comum constatar que exagerei em algum sentimento, algum ingrediente, um pouquinho a mais e tudo desmorona e que isso serve para as relações de trabalho, de amigos, afetivas ou bolo, indistintamente.
Igual a fazer uma torta, uma verdadeira alquimia, ingredientes comuns que misturados corretamente se transformam de maneira mágica, com cheiro, temperatura ou sabores inesquecíveis, semelhante a quando acertamos na mistura de afetos.
Gosto de pensar que o universo vai nos expondo aquilo que precisamos para aprender, para melhorar, para sermos felizes. O que me intriga é que não tendo a menor compreensão dos diferentes significados (ou da ausência deles), não consigo aprender quase nada e repito os mesmos erros.
A vida é uma receita cheia de ingredientes, coisa demais, difíceis de serem selecionados para composição em favor da realização dos sonhos ou na produção de trilhas mais amenas. Simplesmente assim, às vezes funciona, às vezes não…
Hoje fiz um exame médico, nessa receita tinha misturado aflição com a agulha, receio do injetável, pavor do resultado e do mesmo modo que a massa do pão às vezes adquire vontade própria e resolve se comportar diferentemente do esperado, nesse exame aconteceu isso mesmo, resultou numa coleção de medos, muito maiores que os relacionados.
O cheiro da fumaça ficou na casa, no carro ou simplesmente no meu nariz. Para onde eu me virava, sentia ele presente, como que houvesse uma voz do divino a dizer, “segue a receita, não inova”, ainda que haja nisso apenas a mediocridade tão tolerada pelos paladares.
No modo de preparo do meu exame nem tinha escrito que era preciso me fingir de forte e não pedir ajuda a ninguém. Tenho afetos com quem contar, bastava ter avisado, mas eu preferi a receita mais trabalhosa, aquela que me empurra para o encontro da coragem, que nem sabíamos que tínhamos.
Eu sou boa de cozinha, nesse “quadrado” eu erro pouco, mas na forma de preparo de uma vida mais leve eu tenho errado na mão. Estou quase sempre significando o mundo além da minha porta e isso põe a perder qualquer receita.
Concluo que apesar de ter vivido bastante, com muito tempo para praticar, ainda não tenho o necessário conhecimento para ter o título de Chef da Vida. O máximo que consegui foi acertar no preparo da “esperança”. Essa me parece ser o trufa da receita, mas isso já é outra história.