Uma “coisista” acidental

Pablo Neruda se definia como sendo um “coisista” porque gostava de colecionar pequenas coisas e das mais variadas, tanto que a casa dele em Isla Negra é um bom exemplo de como juntar diversas objetos, pelo simples prazer, sem que houvesse uma razão aparente.

Gostei tanto dessa definição que ao invés de olhar para mim como sendo uma “quase acumuladora” pela quantidade de mimos que gosto de juntar, adotei o olhar de um poeta e me considero uma “quase coisista”.

Tenho livros, quadros, óculos, relógios, bolsas e muitos outros objetos que necessariamente não precisavam ser tantos para me dar grande prazer.

Tendo uma característica de personalidade como essa, os santos esculpidos em madeira não podiam faltar na minha casa, cheia de referências diversas, e dentre eles um em especial, Santo Antônio, Santo da devoção de minha mãe.

Presente de um Penedense querido, feito pelos santeiros de lá e que me acompanha por 30 anos, sempre dentro de casa, perto da porta, cuidando da minha proteção.

Acontece que por uma necessidade momentânea ele acabou passando uma temporada na varanda, levando sol, chuva e sereno, e quando chegou a hora de voltar para o lugar, necessitava de reparo.

Foi então que resolvi eu mesma, limpar, lixar e envernizar, uma reverência especial, quase uma oração.

Quando coloquei o pincel sobre a cabeça da imagem, pude ver escorrer pela sua testa, em direção a bochecha, uma gota de verniz que me fez lembrar o premiadíssimo filme italiano “Morte em Veneza”, na cena em que o suor preto desce do cabelo tingido de rinçagem pelo rosto.

Pintar o cabelo de negro foi uma tentativa do personagem, um homem maduro, que ao se ver perdidamente apaixonado por um jovem, tentou segurar sua própria juventude escondendo o grisalho trazido pela idade.

É um filme sofrido, cujo argumento mostra como uma paixão irrestrita tira a capacidade de raciocinar, como subverte a razão, como nos torna desatento com os riscos.

E eu, diligentemente espalhando o verniz, de forma suave e com cuidado, não conseguia deixar de pensar em como a vida se encarrega de acontecer a nossa revelia.

Se optarmos por nos preservarmos vivendo de detalhes, de forma simples, sem sobressaltos, haveremos de evitar as paixões, mas para que serve tanto cuidado se o resultado acaba sendo um coração vazio?

Eu nunca compreendi como se formam pares harmônicos, só consigo entender como funcionam mal os que não são assim.

O cupido me parece ser um grande irresponsável, que sai por aí aleatoriamente a criar casos, com objetivo único de catalisar a criatividade, de intensificar os sentidos, potencializar os dons, mas sem nenhum cuidado com as pessoas ou com os desdobramentos disso.

Junta ao acaso “alhos com bugalhos” e quando vemos tem um caos ao nosso entorno. Poucos os que estão felizes, muitos os que se encontram diferente do que sonharam para si próprios.

Ao continuar olhando com atenção a imagem daquele Santo, acabei por fazer um paralelo ao que seria essa avalanche de questionamentos a respeito das paixões.

Quando eu coloquei Santo Antônio na varanda, tinha um objetivo de ocupar o espaço deixado por outra peça de madeira, essa sim mais apropriada para as intempéries do tempo, um gato de tronco maciço. Acontece que eu na minha urgência de me sentir feliz, não pensei a esse respeito.

Meu Santo apresenta pequenas rachaduras, cicatrizes pela falta de algumas lascas, que necessitam de restauros, agora mais difíceis de serem resolvidos, que não teriam acontecido caso eu não tivesse colocado ele num lugar inapropriado.

Assim mesmo fazemos com nossas relações, a busca pelos prazeres imediatos, ou a falta de sensibilidade para escolher onde colocamos as pessoas, promovem uma tremenda confusão.

Acreditamos amar apenas por desejos, ou temos uma preguiça danada de desejar quem cabe no lugar, (seja por qual motivo for).

O meu Santo casamenteiro assumiu cuidadosamente a missão de me proteger, mas de vez em quando abre meu coração para que eu não o preserve tão árido e cuida de alertar para que, diferentemente do personagem do filme, eu não deixe de enxergar.

Continuei a passar o verniz nele, quase como que tivesse dando os primeiros banhos de meu filho Pedro, com cuidado redobrado, com carinho, com devoção. Sendo eu uma coisista acidental, não seriam os afetos que economizaria.

Na casa em frente ao mar Neruda podia olhar o horizonte e sonhar com ele, na porta de minha casa Santo Antônio pode olhar quem entra e zelar por mim, e assim, ainda que pareça tão díspares, o objetivo de ambos acaba sendo o mesmo, visualizar a possibilidade de poesia e de amor.

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