Quando do lançamento do romance “A menina que roubava livros”, fui surpreendida por um fato que nunca havia me ocupado a reflexão antes: o sofrimento do povo em geral, que não pertencia ao exército, que não era judeu, que não era nada mais que gente comum, absolutamente comum, moradores de ruas simples, de vidas simples.
Conversando com Pedro sobre esse assunto, ele olhou para mim perplexo e comentou, “- Mãe, como você pode imaginar que numa guerra exista alguém que esteja preservado de sofrimento?”.
Verdade, como que eu pude imaginar uma bobagem dessas? Dei-me um abatimento dizendo que era a total falta de contato com conflitos, mas para ser franca, era ignorância mesmo.
Apesar de ter lido a respeito, assistido filmes, conhecido sobreviventes de Auschwitz, parece que sempre agi de forma a me preservar das dores provocadas pelo flagelo das guerras, evitando pensar, de fato, sobre isso.
Mas o cinema (sempre o cinema), reeditou o gosto pelos dramas passados nos campos de batalha e me peguei, finalmente, imaginando que o grande triunfo de uma guerra ē imprimir sofrimento generalizado. Mais que o número total de mortes, o massacre se dá através do medo, dos temores, seja de perder a própria vida, mas principalmente de perder os amores, as conquistas, as razões pelas quais vale a pena acordar no dia seguinte.
A partir dessa constatação, parte da preocupação que eu tive a respeito de uma terceira guerra mundial, uma grande, dessas que une metade do mundo contra outra metade, diminuiu. Entendi que isso não seria provável, não com a quantidade de armas repletas de tecnologia existente, um conflito desses não ultrapassaria mais que alguns poucos dias, sem tempo para provocar medo ou sofrimento.
Percebi então que a capacidade humana de criar desordem e submeter toda a gente à dor é infinita, e me pego achando que estamos todos em plena guerra, a guerra da atualidade, com novo desenho, novo modelo, sem que haja necessariamente um exército fardado e armado nos formatos das trincheiras ou dos filmes.
A guerra que travamos agora é mais sutil, mas não menos danosa. Ela surge no medo da violência, na intolerância que propicia atos de terrorismo, na ganância de poderosos que fingem nos representar, na insanidade de líderes vaidosos e egoístas.
A nova guerra me é apresentada quando durante a Hora do Brasil, depois de um dia de trabalho sem ter tido tempo para noticiário, ouço o Presidente se solidarizar com a Bahia pelo naufrágio de um barco de passageiros e penso comigo: “errou, foi no Pará”, mas não, em dois dias tivemos dois desastres grandiosos.
A nova guerra é o Rio de Janeiro contabilizando o centésimo policial morto esse ano, “a polícia que mais mata é também a polícia que mais morre” e lamento que estejamos nos acostumando com a ideia de que isso não tem jeito.
Os mortos do Titanic são lembrados até hoje porque havia 30 magnatas entre eles, diferente das crianças pobres que morreram nos barcos no Brasil, que tem data marcada para o esquecimento. Diferente dos mortos negros das nossas favelas ou dos policiais, cidadãos de segunda classe, as vítimas do terrorismo de Barcelona serão choradas por mais tempo, o mundo e suas dores seletivas.
A corrupção, a ganância, a intolerância, a vaidade é a guerra que eu imaginei que não iria acontecer, que não poupa ninguém, nem mesmo gente simples como eu, a provocar medo, não apenas de perder a vida, mas de perder os amores, as conquistas, ou tudo o mais, pelo qual vale a pena acreditar no amanhecer.
A ignorância que me fez acreditar que havia numa guerra quem pudesse ser poupado é a mesma que cria a ilusão naqueles que mandam no mundo, que supõem encerrar os perigos quando se fecham atras da porta de uma luxuosa casa. Engano, essa guerra é de todos, a esses caberá apenas a diferença de ocupar mais tempo nas manchetes dos noticiários, mas ela não poupará ninguém, nem os personagens do cinema ou da literatura.