O MBL (Movimento Brasil Livre) não é original, mas é genial. É necessário admitir.
Vivemos em um país que atravessa uma das piores crises econômicas e políticas de sua história. País cujo presidente – que eles apoiam – tem ridículos 3% de aprovação popular.
País há pouco governado por atuais presidiários: Geddel e Henrique Eduardo Alves.
País no qual o principal candidato da antiga oposição – que eles apoiaram – é comprovadamente salafrário. Poderíamos hoje ser governados por um picareta falso moralista que pede dois milhões “emprestados” a outro picareta e promete matar um potencial delator.
País no qual um senador da república tem seu helicóptero apreendido com meia tonelada de cocaína e continua tudo como dantes no quartel de Abrantes.
Um país, enfim, afundado em problemas das mais graves ordens.
Incapazes de oferecer uma resposta a esses desafios ou fazerem uma autocrítica – confessar que nunca foram contra corrupção, mas apenas contra a corrupção petista, por exemplo –, o MBL se viu numa enrascada.
E, num golpe de mestre, jogou a isca e nós todos mordemos. Se eles são patos, nós somos bagres. Eis que num país em chamas, demos para discutir estética e definições do que é arte.
Apercebam-se: estamos discutindo “apologia à zoofilia”. Atenção, no Brasil, no ano da graça de 2017, as pessoas discutiram os perigos da “apologia à zoofilia”. Estamos discutindo, o sexo dos anjos (e dos bichos) no meio do Armagedom.
O MBL soube ler e interpretar o inconsciente nacional. O “cidadão de bem” brasileiro apresenta uma clara regularidade histórica em seu comportamento: é conservador nos costumes e possuiu um medo irracional do comunismo. E os políticos, ao longo de décadas, souberam usar e cultivar esse medo em proveito próprio.
Em novembro de 1935, houve um levante comunista chinfrim no Brasil, que jamais colocou em risco real o governo central. Mas Vargas – que era tudo, menos besta – aproveitou para fazer uma verdadeira caça às bruxas. Prendeu e torturou gente como o diabo.
Forjou-se então, em 1937, um documento chamado de “Plano Cohen”, que seria a prova cabal de que os comunistas estavam prestes a tomar as rédeas do poder nessa terra dos coqueiros que dão coco. Para nos livrar de uma ditadura hipotética, Vargas fez-se concretamente ditador por mais oito anos.
Em 1964, a coisa foi semelhante. Afirmava-se que o governo Jango e as forças armadas estavam abarrotados de comunistas. Dizia-se que a revolução socialista era questão de pouco tempo. Mais uma vez, para nos salvar dos perigos de uma potencial ditadura, os milicos se fizeram ditadores por 21 anos.
O “cidadão de bem” local odeia tanto o autoritarismo soviético que bate palma para os que lhe tiram a liberdade. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas o “cidadão de bem” brasileiro não muda.
No século XXI, o comunismo amorenou-se, virando o bolivarianismo de Chávez. Idiotas ganharam fama e seguidores denunciando a “revolução intelectual gramscista” e as maquinações do mítico “Foro de São Paulo”.
O medo de uma suposta ditadura bolivariana foi o que uniu a turba de camisas da CBF. Derrubaram o governo Dilma (que era péssimo, diga-se) utilizando o tema que ecoa o espírito de 1937 e 1964: “nossa bandeira jamais será vermelha”.
Não estranharia, portanto, que para se livrar de uma hipotética ditadura bolivariana, o “cidadão de bem” entregue o poder e suas liberdades a um Bolsonaro da vida.
O homo brazilis é também pudico. Cruzadas em defesa da “moral e dos bons costumes” são nossas coisas, são coisas nossas. Jânio proibiu o biquíni nas praias. Na Ditadura, filmes eram proibidos e censurados em nome da defesa da família e dos valores cristãos. Os brasileiros só puderam ver a famosa cena da manteiga de O último tango em Paris muitos anos após o lançamento do filme. Caso único na história universal de uma manteiga subversiva.
Isso num país assolado pela fome, com “homens gabirus” na zona da mata nordestina, com retirantes se vendo na contingência de comer calangos e saquear mercados para não morrer de fome, com crianças analfabetas e subnutridas. Com gente sem esgoto, água, vivendo em casas de compensado e zinco. Com gente se alimentando de lixo.
Era preciso cuidar da moral, era preciso censurar subversivos como Celso Furtado, Darcy Ribeiro e Josué de Castro. Subversivo por dizerem o óbvio: há miséria nesse país.
E aqui estamos, em 2017, com a pornografia ocupando 99% do espaço da internet, discutindo os perigos da “apologia à zoofilia”. Repito: estamos discutindo os perigos de um quadro levar nossos jovens a violarem cabras, cabritos e outros quadrúpedes.
Deu-se agora para ver pedofilia em tudo: em um quadro chamado “criança viada”, em uma pintura algo abstrata com pessoas ajoelhadas ao redor de uma cama, e numa mãe que permite que sua filha toque uma escultura – um homem nu – dentro de um museu, com plateia, sob seu cuidado.
A mãe da garota é agora comparada a pais que levam seus filhos para serem estuprados. O artista é comparado aos pervertidos que violam crianças. A criança que participava de uma exposição agora é comparada com uma criança estuprada.
Alexandre Frota é agora o catedrático de Filosofia da Arte e Estética da Universidade do Twitter do Brasil. A que ponto chegamos? A que ponto vamos chegar?
O MBL é genial, mas não é novo: é mais velho que a hipocrisia e o diversionismo. O MBL é o moralismo católico integralista, é a mocidade da UDN, é as senhoras da marcha pela família.
Não há nada de novo sob o sol. Só nos resta resistir.