Uma estrada de chão batido leva a um casebre, no meio do mato, no Parque Sócio-Ambiental de Canabrava. A descrição pode até indicar um paraíso bucólico, perdido na grande cidade, mas basta olhar de perto para ver que carcaças de veículos em volta e buracos de balas nas paredes estão mais para cenário de filme de terror – ou faroeste. Os vilões também podem parecer confiáveis: policiais militares, a quem se recorre numa situação de perigo. Mas, para o empresário João* (nome fictício), que foi sequestrado e levado até o centro de tortura, em 2015, eles foram o próprio perigo.
Segundo a vítima, o local foi escolhido por uma quadrilha formada, principalmente, por PMs, para extorqui-lo e eliminá-lo. Ele ficou por mais de uma hora na iminência de levar um tiro na nuca, caso não concordasse com as exigências do grupo que, segundo a vítima, tinha como ‘xerife’ Juraci Belo Santos, soldado reformado que está preso, e outro policial militar não identificado.
Histórico dos suspeitos
A prisão de Juraci, na verdade, ocorreu por conta de outro caso de sequestro e extorsão, que terminou com as mortes do agente penitenciário Andrew Trindade Vieira e o amigo dele, Marcos Gomes Vidal, ocorrido há um ano. Neste caso, o soldado Marcos Vinicius de Jesus Borges Ciriaco também é apontado como um dos assassinos.
Ciriaco já respondia, em liberdade, por homicídio, quando foi preso novamente em julho deste ano. Desta vez, junto com outros três PMs (ver abaixo) e uma quinta pessoa, todos suspeitos de extorquir, torturar e matar um casal dentro de uma casa no bairro de Placaford, em setembro de 2016. Em comum, em todos os casos, a extorsão, mediante tortura psicológica, e pedidos de altas quantias em dinheiro – terminando, em alguns casos, com a morte dos ‘selecionados’.
Decisão de falar
Apesar da repercussão dos crimes e da prisão dos envolvidos, todos ainda permanecem nos quadros da PM e podem ser soltos a qualquer momento.
Mas o que chamou a atenção de uma das vítimas foi a escolha de um local para a prática da tortura e, aparentemente, execução de sequestrados. “Fiquei apavorado com o que vi. A construção estava toda furada de balas e nos comentários deles, dava pra ver que não fui o único a ser lado para ali”, conta João, ao retornar no último dia 6 de setembro com o CORREIO à cena que jamais esquecerá. “Voltar aqui é como ter novamente a sensação de morte. Foi Deus que me livrou. Só tenho essa explicação para poder estar aqui e reviver isso”, revelou o empresário, que após dois anos, resolveu falar, a fim de evitar que a quadrilha volte a fazer novas vítimas.
“Eles não podem ficar impunes. Precisam ficar presos para que não façam o mesmo com outras pessoas. Só eu sei o trauma que carrego”, declarou João.
Além de Juraci Belo, ele reconheceu mais um dos seis bandidos que o extorquiram: é Osmário Barbosa Damião, que já foi preso por roubo a confecção.
Sequestro
Morador de Cajazeiras, João era proprietário de uma frota de caçambas e guinchos na Av. Gal Costa. A quadrilha chegou a ele porque um dos suspeitos morava no mesmo bairro dele e, por isso, conhecia sua rotina.
O bando montou um plano para sequestrá-lo. Aproveitou que João pôs à venda um galpão e simularam interesse. “Ligaram pra mim e marcamos um ponto de encontro”, conta João. O empresário tinha no bolso da calça R$ 7,8 mil, recebidos naquele dia.
Os criminosos chegaram em dois carros por volta de 12h. O primeiro levava Osmário e um policial, e foi o veículo que enquadrou João no local onde ocorreria a negociação. O segundo carro, na retaguarda, trazia o restante do bando, entre eles o PM aposentado Juraci.
“Na hora, todos saíram dos carros e disseram que eram policiais civis e que iam me levar para a delegacia, que eu era procurado, que seria preso e que tinha que pagar R$ 100 mil pela minha liberdade. Disse que não tinha e que nada devia à polícia ou à Justiça. A partir daí, passaram a me exigir R$ 120 mil para não morrer”, contou o empresário.
Osmário, que está preso, e o PM não identificado o puseram dentro de um dos carros e o levaram rumo ao casebre em Canabrava. Já os demais, seguiram para a casa do empresário em Cajazeiras.
No trajeto até Canabrava, Osmário era quem conduzia o carro e parecia mais agitado. “Ele estava muito nervoso. A todo momento, ele dizia para o PM – que estava do meu lado, no banco de trás –, que eu não poderia sair vivo”, recorda.
Os bandidos faziam contato pelo celular e, pela conversa, João percebeu que os outros já estavam em sua casa. “Eles diziam que encontraram R$ 5,6 mil. Insistiam em mais, mas não tinha. Então, disse que poderia ligar para um amigo e fazer um empréstimo. Mas não quiseram. Insistiam que eu mentia, que ia morrer”, relatou.
Ainda no caminho para Canabrava, o PM que estava ao lado, com uma arma apontada para João, aproveitou o momento em que Osmário estava mais concentrado no percurso e pegou os R$ 7,8 mil que estavam em seu bolso. “Ele fez um sinal para eu ficar calado, senão me apagaria”, relata.
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Marcas de tiros em parede de imóvel usado como cativeiro (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)
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Imóvel é apontado como casa de tortura por vítima (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)
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Cápsulas de bala encontradas no local (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)
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Local usado por quadrilha fica em frente ao Barradão (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO)
Cativeiro
O empresário rezava para que alguém chegasse ali, mas, apesar de tudo ter acontecido próximo a um local movimentado, bem em frente ao estádio Barradão, as ameaças de morte só eram ouvidas pelos três e pelos urubus, que sobrevoavam em busca de alimento.
Uma coisa que chamou a atenção de João e ajudou a chegar à identificação dos criminosos foi o fato de todos falarem entre si, algumas vezes, em códigos.
“Ouvi o PM, no banco de trás, chamar Osmário pelo nome, que também, durante conversa pelo celular, falou o nome de Juraci Belo, o chefe da quadrilha”, relata.
Para João, o momento mais tenso foi a decisão de Osmário de matá-lo. “Ele disse: ‘Ele não pode sair daqui assim. Temos que terminar o serviço. Ele conhece um ‘Papa Charlie’ (código para policial civil) e vai sujar tudo’. Mas o PM dizia que eu não era ‘pombo sujo’, e que eu não ia entregar ninguém’”, recorda.
Porém, Osmário estava decidido a concluir o plano. “Ele foi na mala do carro, pegou um pano, colocou no chão, e mandou eu ajoelhar. Na hora, me recusei, e corri para trás do PM, que ainda insistia para não me matar. ‘Não precisamos fazer isso. Se ele abrir a boca, eu mesmo corto a cabeça dele’. E eles começaram a discutir. Foi quando, em mente, conversei com Deus. Disse: ‘minha vida vai com o Senhor, não vai com o Diabo’”, contou João, frequentador de uma igreja protestante.
Segundo ele, sua prece foi atendida logo depois, quando Osmário concordou em libertá-lo sob a ameaça de retornarem caso a história viesse à tona. “Inicialmente, pensei até que seria outra armadilha, para me matarem em outro lugar. Mas percebi que não era, porque fui no banco detrás e o PM no carona”, disse o empresário.
Surpresa
Liberto duas horas depois em Vale dos Lagos, João resolveu ir à Delegacia de Repressão a Furtos e Roubos de Veículos (DRFRV), para prestar queixa do roubo do carro, e logo depois fez uma denúncia contra os PMs na Corregedoria. “Um amigo me disse que estes policiais voltariam para me extorquir e, provavelmente, não teria a mesma sorte de sair vivo”, explica.
Ao chegar na DRFRV, uma surpresa. Um delegado lhe mostrou um álbum de fotografia de criminosos, no qual reconheceu Juraci Belo e Osmário, que já eram procurados. “O próprio delegado também me aconselhou a ir à Corregedoria e foi o que fiz”, contou João, que prestou queixa no mesmo dia.
Após isso, decidiu deixar o Brasil. “A minha decisão teve consequências. Tive que vender tudo o que tinha por bagatela”, comentou. Este ano, de férias, resolveu vir ao Brasil, para rever amigos, quando soube que um dos policiais que participou de seu sequestro estava envolvido em crimes mais recentes.
“Não podia me calar. Eles vão ter que pagar por tudo que fizeram”, finalizou.
Parque
O acesso à casa de tortura da quadrilha é fácil. Na visita feita pelo CORREIO, ao lado de João, o portão estava escancarado, sem controle de acesso. No chão, dentro e fora do imóvel abandonado, três cartuchos de pistola 380 e ponto 40. Além disso, um saco com vestígios de sangue recente – indício de uma recorrente prática de tortura, com saco na cabeça.
Apesar de nenhum vigilante ter sido visto no local, a Secretaria da Cidade Sustentável (Secis), que administra o Parque Sócio-Ambiental de Canabrava, informou que o local é um parque urbano criado num extinto lixão e que tem um segurança em circulação. Ainda de acordo com a Secis, a construção abandonada é uma antiga estação de tratamento.
Bando é suspeito de executar casal em Placaford
O soldado Marcos Ciriaco respondia por homicídio, em liberdade, quando foi preso novamente por homicídio em julho deste ano. Segundo a Polícia Civil, ele é um dos quatro PMs que, junto com uma quinta pessoa, são responsáveis pelo latrocínio do projetista industrial Renato Giffoni Habib, 58, e da esposa dele, a dona de casa Nélida Cristina Oliveira Habib, 55, em 25 de setembro de 2016. Os dois foram amarrados e amordaçados, e acabaram mortos, dentro da casa onde moravam no bairro de Placaford.
Renato e Nélida Habib foram amarradas, amordaçadas e executadas dentro de casa por bando de PMs (Foto: Reprodução) |
Após executar Renato e Nélida, cada um com um tiro na cabeça, os criminosos roubaram pertences da família e fugiram. Na ocasião, o estudante de Engenharia Mecânica Bruce Habib, 25, filho do casal, escapou da morte após se esconder dentro de casa.
Além de Marcos Ciriaco, foram presos pelo crime e estão custodiados no Batalhão de Choque da PM, em Lauro de Freitas, os policiais militares Ronaldo Pedro de Souza, 44, que trabalha no subcomando geral da corporação, no Quartel dos Aflitos; Jonas Oliveira Góes Junior, da 35ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM/Iguatemi), além de Henrique Paulo Chaves Costa, 36, do Batalhão de Guardas. Já o quinto envolvido, Diogo de Oliveira Ricardo, 29, que não é PM, está no Complexo da Mata Escura. O ex-PM Paulo César Alves Filgueiras, o Paulo Escopeta, exonerado da corporação anos antes, também foi preso, acusado de ajudar o grupo no caso de Placaford.
Um dia depois do crime, dois homens armados rondaram a casa das vítimas. O CORREIO flagrou a situação (foto abaixo). Ambos chegaram a enquadrar a equipe de reportagem, fazendo perguntas. Não foi possível confirmar se algum deles está entre os suspeitos.
Homens armados, em atitude suspeita, na frente de imóvel onde casal foi morto um dia antes (Foto: Arquivo CORREIO) |
Suspeitos seguem fazendo parte da PM
A Polícia Militar comentou a situação de cada um dos PMs suspeitos de crimes como sequestro, extorsão, tortura e assassinato. Segundo a assessoria da corporação, a Corregedoria da PM só poderá informar se os militares serão exonerados, ou não, ao término do processo disciplinar.
Sobre o PM aposentado Juraci Belo Santos, a assessoria informou que ele responde a um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), por ter sido preso em flagrante praticando roubo. Contudo, o PAD está suspenso em razão de o acusado ter alegado insanidade mental. No último dia 8 de agosto, Juraci foi preso em cumprimento a mandado de prisão preventiva e será submetido a um novo PAD, que se encontra em fase de instauração, sob acusação de ter praticado crime de extorsão.
Já o soldado Marcos Ciriaco responde a outro PAD para apurar denúncia oferecida pelo Tribunal do Júri, por ter sido acusado de matar Rafael Ramos Santos, em 15 de fevereiro de 2013, no bairro de Nova Brasília. O PAD encontra-se em andamento.
A assessoria da Polícia Civil informou que o soldado Ciriaco também está envolvido, de acordo com investigações do Departamento de Repressão e Combate ao Crime Organizado (Draco), no sequestro relâmpago de Washington Lázaro Paganelli de Carvalho Júnior, ocorrido em 13 de outubro de 2016. Já no Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), o policial foi indiciado no inquérito do latrocínio do casal Renato e Nélida Habib, em Placaford. Sobre Juraci Belo, informou que ele é investigado apenas pela morte de Andrew e Vidal, sequestrados na Federação e mortos no CIA.