Deitei a cabeça no travesseiro pouco depois da meia noite do primeiro dia do ano novo, pensando na vida. Na memória as luzes dos fogos da praia de Ponta Verde ainda bem vivas, no coração, que insiste em ser sonhador, um amontoado de esperanças, mas a alma, mais realista, cheia de dúvidas.
Com as atuais redes sociais as distâncias ficaram artificialmente reduzidas e nosso ciclo de amizades cresceu. Desde novembro que recebo votos de Feliz Ano Novo e junto o desejo de saúde e paz, “porque o resto a gente corre atrás”. Eu quero saúde e paz, mas quero muito mais que isso.
E no escurinho do quarto silencioso, confesso que fiquei me sentindo uma pessoa má por querer tanto, iniciar o ano já olhando pra mim mesma com olhos de repreensão não parecia um bom presságio e não me enganei, 2018 já chegou mexendo comigo.
Eu gosto dos rituais da passagem, mas esse ano simplifiquei muito, tanto que quase só sobrou comer uvas e nem lembrava mais exatamente o que era pra fazer com elas, e não sabendo fiz o seguinte: comi sete delas e guardei as sementes para colocar na carteira, para cada uma fiz um pedido e lamentei gostar do número sete, devia gostar do quatorze, vinte e um… para caber tantos planos.
É bem verdade que parte dos pedidos são simples, mas quando me permito sair da miudeza da realidade, meus desejos voam longe, tão longe que chego a achar que não haveria uvas suficientes.
Precisei fazer uma escolha, mas queria mesmo pedir sem medidas, além da manjada “saúde e paz”, quero trabalho, amor, felicidade, segurança, reciprocidade, paciência, prazer, abraço, lazer, compreensão, justiça social, menos hipocrisia, mais solidariedade, fim da corrupção, menos desigualdade, um país melhor… afinal aqueles minutos dos fogos duram tempo suficiente para sonhar com muita coisa.
E quando eu disse que meu sexto sentido acendeu a luz amarela logo no início do ano quando me julguei demasiado pretensiosa com tantos desejos, não me enganei. Meu primeiro contato com o ciclo que inicia foi assistido um rapaz jovem, de bermuda, magro, descalço e sem luvas, subir no caminhão que recolhe o lixo para abrir os sacos e catar alguma coisa. Parecia que ele era invisível, ninguém o olhava.
Exceto uma moça, de idade semelhante, que corria ao lado dele com um saco aberto para colocarem dentro o que julgavam ter serventia. A pobreza e sua perversidade, atingindo o que será o homem do futuro, em plena luz do Dia Mundial da Paz.
A tão famosa paz dos pedidos, recitada quase que sem nenhuma reflexão sobre o que significa, inclusive para mim, que fui ao dicionário pra ter certeza que a realidade não tá encaixando bem com esse sentimento tão humanitário é apenas uma utopia.
“Paz é um estado de calmaria, de harmonia, de concórdia e de tranquilidade” (Aurélio), essa é uma das definições, mas tem outras, mais filosóficas, mais difíceis ainda de encaixar no mundo atual, tais como “estado de quietude, ausência de violência e de guerra, calma interior”.
Uma amiga, numa conversa de sorveteria, me fez pensar que é a melhoria das ações de cada um dos homens individualmente que promoverá as tão desejadas mudanças que esperamos para o mundo, mas como fazer isso se parte das pessoas não pertence a mundo nenhum? Como podem melhorar se não são sequer enxergados?
Na realidade cultivamos mesmo é mais inveja, ódio, egoísmo e a ambição apropriadas para conseguir viver nessa realidade, onde levar vantagens ē sinônimo de sabedoria, onde ser solidário parece ingenuidade, onde a Paz não ē levada a sério.
Na minha cota de sete pedidos eu não mencionei dinheiro porque já estava usando uma peça de roupa amarela, exatamente como algumas atrizes globais, mas “gastei” um deles pedindo a tal da paz, mesmo sendo clichê, mesmo pensando que quero um monte de outras coisas mais.
Ou mudamos quase tudo (e esse ano temos uma eleição pela frente) ou mesmo no Ano Novo seguiremos cantando “Oh mundo tão desigual, tudo é tão desigual, de um lado esse carnaval, de outro a fome total”. Música que cabe bem para a trilha sonora da parceria do casalzinho do lixo. Que não falte esperanças para tornar aquelas pernas finas capazes de correr atrás. Vamos todos precisar dela … e eu acabei esquecendo de pedir “esperança”, que pena.
Janeiro de 2018