Eu fui criada com cães, Pedro foi criado com cães, ou seja, eles fazem parte da nossa memória afetiva com interferência naquilo que nos tornamos. Não seria de se espantar se criássemos cães em casa, eles nos completam os afetos, no entanto, dão trabalho e preocupação, ocupam um tempo que já não dispomos daí arrumamos uma solução intermediária: cães de fim de semana, assim como filhos de pais separados.
A nossa colaboradora tem dois Poodles de tamanho médio, que passam parte do fim de semana conosco aqui em casa, quando ela vem trabalhar e isso acaba sendo uma festa. Nesses dias toda rotina se volta pra eles, o almoço é uma folia, o passeio na praça uma obrigação, o assunto e as atenções giram em torno deles e assim vamos exercendo nossa capacidade de amar e conversar com os animais. Eles são um casal, ambos com histórias de abandono e com comportamentos absolutamente distintos um do outro.
A fêmea Doly é dócil, educada, esguia, sempre a suplicar atenção. Não nos deixa um segundo sem que estejamos acariciando ela, e para isso pula na perna, na cama, passa a pata na nossa mão, tenta lamber nosso rosto, aceita passivamente ser carregada, mudada de lugar, não oferece riscos, é uma dama.
Ele, o Bob, não… Ele é voluntarioso, se contrariado ele morde. Nos seus momentos de introspecção se acomoda embaixo de um móvel que escolheu e ai de quem tentar tirar, mas quando nos baixamos e falamos baixinho sobre carinho, ele abre as perninhas esperando uma carícia na barriga.
Na mesa ele se sustenta nas patinhas traseiras (zambetas) a pedir comida, adora carne ou frango, aceita uns biscoitinhos que faço com grãos (ruins), mas come com cara de desdém a balançar a cabeça, olhando pra mim como que a falar “só vou comer porque devem fazer bem à saúde”, mas não aceita alface e eu entendo que é ele a me dizer que não dá pra ceder a tudo sempre.
Sendo ambos tão diferentes, ela dócil, ele bravo, ela confiável, ele temerário, ela bonita, ele mais feinho, ela sempre a ceder, ele sempre a questionar; apressadamente somos levados a julgar que é ela a preferida, só que não…
A surpresa é que a convivência com Bob acaba sendo mais interessante, a excessiva subserviência de Doly, a aceitar tudo, a cobrar atenção o tempo todo, cansa. Já com ele não, ele é uma eterna descoberta de uma relação respeitosa, que requer conquista, paciência e infinita capacidade de amar e perdoar.
Dito assim parece até que somos malucos, a gostar de perigo, mas não é isso, a razão dessa preferência é outra. Dentre as diferenças que eles têm, uma significativa é que ela não aceita se entregar, fica sempre meio alerta, imagino que necessite se sentir aceita e tem medo de decepcionar, ele não… ele se permite deitar em nós com as pernas para o ar e olhos fechados, ser abraçado e beijado sem oferecer resistência, desde que seja na hora que ele quer, sem nenhum compromisso em repetir o feito nos momentos de outros interesses.
Com ele a relação é intensa e cheia de graça, com ela monótona, previsível e cansativa…
Parece que assim somos variando entre a falta de autoestima que nos coloca na posição de aceitar passivamente qualquer sobra de atenção ou no lugar do líder, que estabelece limites para interferência dos demais e mesmo assim continuam interessantes o suficiente para manter a todos a seu redor, como que dependentes de alguma revelação.
Minha mãe já repetia, “o caminho certo é o caminho do meio”, não dá pra viver sempre nos extremos, portanto o cão ideal não ē nenhum dos dois, um terceiro talvez, disso eu não tenho dúvidas, mas se tivesse que escolher entre qual deles gostaria de ser ou ter, escolheria o Bob, ele é muito mais interessante, apesar de morder, não lido bem com carências e subserviências.
E a me perguntar por quê? Já que me pergunto o sentido de tudo que me cerca, só me veio a cabeça uma reflexão proveniente de relação entre os filósofos Montaigne e Étienne de la Boétie, que resulta numa das mais belas frases já ditas sobre a causa central dos afetos “porque era ele, porque era eu”.
E nos finais de semana, como quem recebe a visita de filhos que nos foram retirados do cotidiano pelas separações, vamos vivendo a vida nas doses que se apresentam, que servem para significar a rotina com a recordação dos instantes de felicidade, instantes em que Bob se entrega. Porque é Bob, porque sou eu…