A professora de matemática transexual Natalha Claudinei Silva Nascimento deu, na última sexta-feira (31), uma aula inusitada: dentro de uma sala do Fórum de Justiça de Brasília, falou não para alunos adolescentes, mas sim para 40 funcionários de uma pastelaria de onde ela era xingada diariamente.
Na aula, em vez dos números que ensinou por mais de dez anos como professora de ensinos médio e fundamental, Natalha lecionou sobre gênero, aspectos biológicos e comportamentais dos transgêneros, direitos, violência contra os desiguais e a importância de denunciar atos discriminatórios.
“Foi a ignorância que me fez sofrer por todos esses anos e quero acabar com ela com a eduçação”, diz a maranhense de 35 anos.
O motivo do encontro foi um processo judicial movido no final do ano passado por Natalha contra a tradicional pastelaria Viçosa, localizada na rodoviária de Brasília, um dos locais de maior movimento na capital federal. A professora alega ter sofrido agressões e xingamentos diários por parte de um grupo de funcionários do estabelecimento.
“Eu não tinha outra alternativa. Para pegar o ônibus para casa, eu só podia passar em frente à pastelaria e tinha que aturar esses xingamentos”, lembra.
A gota d’água ocorreu em 26 de abril, quando ela decidiu conversar com os funcionários, pedindo para que parassem. Um deles se aproximou, a derrubou no chão e a agrediu violentamente.
Vida com medo
“Fiquei sem reação. Humilhada, só me perguntava por que aquilo acontecera comigo. Estudei, trabalhei, tentei ser o melhor que pude, mas o fato de ser uma mulher transexual me fez construir toda a minha vida em cima do medo, desde criança”, desabafa.
Ao acionar a Justiça, Natalha pediu R$ 20 mil reais de indenização por danos morais. Durante a conciliação judicial, porém, a professora decidiu abrir mão da quantia, pedindo em troca a chance de dar uma aula de questões de gênero à equipe da pastelaria Viçosa.
“Não tem dinheiro no mundo que valha a minha dignidade e respeito. Moro na favela mais perigosa do Distrito Federal e quero transitar livremente sem ter medo de morrer ou ser assassinada por ser quem sou”, diz. “Para mim, o único jeito de viver isso é pela educação, que pode transformar uma sociedade violenta, preconceituosa e corrupta.”
A pastelaria demitiu o funcionário responsável pela agressão física. Patrícia Rosa Calmon, a proprietária, reconhece que falhou por não ter orientado seus funcionários quanto ao respeito às pessoas transgêneras, “até porque sempre entendi que todos são iguais. Mas fico contente que Natalha pôde nos ensinar algo”, diz.
‘Melhor indenização possível’
Natalha reconhece que, enquanto esperava pelos seus novos alunos na aula especial, teve medo de cara fechada e mais rejeição.
“Só que eles chegaram abrindo sorriso e me dando boa tarde. Achei estranho, esperava bate-boca, mas encontrei atenção. Até brinquei com eles que, quem aprendesse a lição de que ‘respeito não tem preço’ já estaria aprovado. Eles riram bastante”, conta Natalha.
Mas dessa vez, não era um riso de zombaria, e sim de generosidade e empatia sobre o que uma professora trans tinha a dizer. “Foi a melhor indenização que eu poderia ganhar na minha vida”, avalia.
Marília de Avila e Silva Sampaio, a juíza do 6º Juizado Especial Cível de Brasília que conduziu o acordo, ficou surpresa com a atitude de Natalha. “Em 22 anos de magistratura, nunca vi um caso desses. Nem de uma pessoa transexual procurar a justiça por danos morais por agressão e nem de uma proposta de aula no lugar de uma reparação financeira”, diz.
“Natalha foi muito firme e corajosa, foi positivo ver pessoas aprendendo sobre discriminação de gênero exatamente de quem sofre a violência. Precisamos mudar, e são pequenos passos como os de Natalha que farão a mudança gigante de que este país precisa.”
Natalha nasceu Claudinei do Nascimento, em Açailândia, cidade com cerca de 100 mil habitantes no interior do Maranhão. Somente aos 22 anos e já morando em Brasília, revelou-se transexual. “Tive que esconder a minha transgeneridade até onde pude. Caso contrário, poderia morrer”, relembra.
Da infância passada na roça com os pais trabalhadores rurais e mais quatro irmãos, ela traz duas memórias marcantes: ser xingada e agredida física e verbalmente por ser negra e homossexual, e ouvir histórias de assassinatos brutais.
“Eu tinha uns 10 anos, estava na escola, quando ouvi que haviam matado um gay. Curiosos, fomos todos ver quem era. Não era apenas um gay. Era um travesti, vestido com roupas femininas e com o órgão genital mutilado enterrado na própria boca. Ali, ainda criança, senti o peso do tamanho da punição a quem ousasse sair da regra e aprendi a conviver com o medo de mim mesma e do que poderia me acontecer por ser quem eu era”, relata.
“Eu nunca soube o que é ser homem. Desde criança, me sentia estranha em um corpo que não acompanhava os meus desejos femininos. Queria ser mãe, gostava de brincar de bonecas e adorava estar junto da minha mãe fazendo tudo o que ela fazia. A minha identidade sempre foi feminina”, afirma.
Ao se assumir, ela enfrentou a ira do pai, a crítica dos irmãos e a insistência dos próprios colegas de trabalho para que mudasse de ideia e se voltasse para a religião evangélica. “Nunca entendi o que estavam me pedindo. Não me sentia estranha e nem me via pecadora.”
Para ela, o episódio de transfobia que sofreu por parte dos funcionários da pastelaria e a busca por reparação na Justiça a fez entender pela primeira vez o que são direitos humanos. “Não sabia o que era um fórum, uma audiência ou reunião de conciliação, não fazia ideia de que poderia lutar pela minha dignidade humana sem estar sozinha”, conta.
Hoje, reconciliada com seu pai, Natalha se dedica a projetos de educação contra o preconceito em uma ONG fundada por ela mesma.
“Existem pessoas de todos os gêneros, menosprezadas, mal amadas e se sentindo sem direito a viver neste mundo. Quero ajudar todas elas com a minha história. Prefiro olhar para a generosidade de todos que um dia, por ignorância, me machucaram, e que hoje, graças à educação, me respeitam. Não compensa ficar remoendo o que passou.”