O alagoano ilustre finalmente vai voltar ao seu habitat natural. E pensar que ele poderia ter desaparecido por completo há cerca de quatro décadas, quando quase não existiam mais exemplares da sua espécie soltos na floresta. Estamos falando do Mutum-de-alagoas (Pauxi mitu), uma ave já extinta da natureza e que figura como uma das mais ameaçadas do planeta. A boa notícia é que está chegando o dia em que ela voltará de vez para os remanescentes da Mata Atlântica de Alagoas e isso quer dizer que, pela primeira vez na história da América Latina, um animal que havia desaparecido por completo do seu local natural, será devolvido ao ambiente onde nasceu originalmente.
A força-tarefa montada para cuidar dos protocolos de reintrodução, da qual o Ministério Público Estadual de Alagoas (MPAL) faz parte, ainda não vai divulgar a data, mas já adianta que o mês escolhido foi setembro. Até lá, estarão acontecendo os últimos preparativos para que a ave possa voltar à natureza de forma segura, sem os riscos de ser capturada por caçadores, com a população recebendo educação ambiental e, claro, com os cuidados necessários para que a mata esteja realmente preservada.
De acordo com o promotor de justiça Alberto Fonseca, três casais serão devolvidos à floresta localizada na usina Utinga, que fica no município de Rio Largo. Mas, enquanto isso não acontece, um grande viveiro está sendo construído na região exatamente com o objetivo de abrigar as aves para que elas passem por um processo de adaptação e, assim, estejam prontas para ganhar a liberdade.
“Esse é um sonho que está sendo construído a muitas mãos, com gente dedicada, que tem amor à natureza e que quer mostrar ao mundo que ainda é possível termos um meio ambiente equilibrado, com fauna e flora coexistindo ao lado dos seres humanos. Foram muitas reuniões, ao longo de anos, até chegarmos a esse momento de pré-soltura. Vários protocolos e termos de ajustamento de conduta (TAC) foram celebrados de modo que pudéssemos preparar o terreno para chegada das aves. E olha, saber que estamos na contagem regressiva para vê-las soltas, livres, vivendo no seu local de origem, chega a ser emocionante”, disse Fonseca.
O primeiro casal chegou em 2017
Para testar a capacidade do Mutum-de-alagoas de se readaptar ao seu habitat natural, em 2017, essa mesma força-tarefa, formada por diversos pesquisadores, criadores e instituições, trouxe um casal de Minas Gerais para Alagoas. Até hoje macho e fêmea estão em um viveiro instalado dentro do Centro de Educação Ambiental Pedro Nardelli, situado na usina Utinga, que aceitou ceder parte da sua área para o projeto. Esse investimento inicial de aproximadamente R$ 500 mil, oriundos de um TAC celebrado pelo Ministério Público, ajudou a tornar realidade a primeira reintrodução na América do Sul de uma espécie já extinta na natureza.
As aves, que foram trazidas para Alagoas em um voo comercial, fazem parte do plantel da Crax Brasil – Sociedade de Pesquisa da Fauna Silvestre, que fica em Contagem, Minas Gerais. E foram os seus fundadores, Roberto Azeredo e James Simpson, que deram continuidade ao sonho do empresário Pedro Nardelli, nascido no Rio de Janeiro. “De lá pra cá, nosso trabalho tem se concentrado em aprimorar técnicas capazes de fazer o mutum-de-alagoas se reproduzir com regularidade”, garantiu Azeredo.
Quem foi Pedro Nardelli
Foi o ambientalista Pedro Nardelli, empresário carioca, quem veio salvar o animal da extinção. Em 1976, ele descobriu que o mutum-de-alagoas estava desaparecendo. E a sua primeira experiência na mata rendeu até uma história engraçada. “Depois de muito peregrinar, descobri que havia um mutum preso. Fiquei curioso com a informação e fui à delegacia para saber o que o coitado do animal havia feito para estar atrás das grades. O policial me disse que um camarada fora detido porque bateu na esposa. E como o sujeito estava acompanhado do bicho na hora do cumprimento do mandado, o mutum foi junto, mesmo não tendo nada a ver com a confusão entre marido e mulher (risos). Acho que esse foi o único caso no mundo onde um animal ficou detido num xadrez humano”, relembrou Nardelli, quando esteve em Alagoas em 2017.
E passado esse episódio, ele conseguiu convencer o dono a trocar o mutum-de-alagoas por um faisão. Logo em seguida, em 1978, Nardelli voltou ao Estado, dessa vez, com uma expedição, e ficou dois anos embrenhado na mata atlântica alagoana. E fez amizade com alguns caçadores, que transformou em parceiros na busca por novos mutuns. Seu objetivo era que fazer com que eles não matassem os poucos exemplares que ainda poderiam existir naquela localidade, já que o mutum-de-alagoas era alvo fácil por causa do seu tamanho.
Em 1980, o ambientalista voltou para o Rio de Janeiro com cinco indivíduos. Eram os últimos vivos e, exatamente por isso, Nardelli decidiu salvá-los do completo desaparecimento. Foi quando teve início à reprodução em cativeiro.
Tal trabalho de reprodução foi continuado pelos criadores mineiros Moacyr Dias e Roberto Azeredo. “A Crax foi a responsável por um excepcional sucesso reprodutivo. Lá, atualmente, existem hoje aproximadamente 100 aves mantidas sob rigoroso controle genético e sanitário”, explicou o ornitólogo Luís Fábio Silveira, Curador das Coleções Ornitológicas do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZUSP).
Infelizmente Pedro Nardelli não poderá acompanhar a devolução do Mutum-de-alagoas ao seu ambiente natural. Ele faleceu no último sábado, 24 de agosto.
Os parceiros que idealizaram a reintrodução
Enquanto as aves se reproduziam em cativeiro, Fernando Pinto, do Instituto de Preservação da Mata Atlântica (IPMA), desenvolvia, junto com o promotor de justiça Alberto Fonseca (MPAL), e José da Silva Nogueira, da Federação das Indústrias do Estado de Alagoas, um trabalho de conservação dos últimos fragmentos florestais do Estado. A ideia era que essas áreas se convertessem em Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), em um processo acompanhado pelo Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA) e pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (SEMARH).
Em paralelo, pesquisadores do MZUSP e da Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba (UFSCar), com o apoio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), trabalharam em conjunto para que o Mutum-de-alagoas possa, em setembro próximo, seja a primeira espécie extinta na natureza a ser devolvida ao seu habitat natural na América do Sul. O único exemplo conhecido de tal iniciativa realizada até hoje nas Américas aconteceu no Havaí (EUA), algumas décadas atrás.
O mutum
O Mutum-de-alagoas é uma ave de grande porte, dispersora de sementes e que possui um papel central na regeneração das florestas onde vive. A espécie habitava apenas a estreita faixa de Mata Atlântica de baixada no estado de Alagoas, e hoje é uma das duas espécies de aves endêmicas do Brasil já extintas na natureza.
“Graças aos esforços de criadores, ONGs, governos estadual e federal, pesquisadores brasileiros e o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), o Brasil é, mais uma vez, pioneiro em iniciativas inovadoras em conservação, e demostra que a sinergia e a proatividade entre os diversos atores traz benefícios tangíveis à sociedade e à natureza”, destacou Luís Fábio Silveira.
“Hoje só temos que comemorar essa expectativa de ver o mutum livre. Sua soltura coroa o trabalho de um grupo de abnegados que se esforçou para devolver à natureza um animal extinto da mata desde o final da década de 1970. E isso representa um sonho não só nosso, mas especialmente do Nardelli, que foi o responsável por resgatar o mutum, há 40 anos. Infelizmente, ele não estará entre nós para ver aquele seu desejo se tornar realidade. Porém, sei que, onde estiver, também estará celebrando junto conosco. É a ave símbolo do estado de Alagoas voltando a morar no lugar de onde ela nunca deveria ter saído”, disse Fernando Pinto, do IPMA.