A matrícula já está feita, mas a estudante Raíssa Nascimento, de 21 anos, diz que ainda não tem noção do seu feito. Filha de uma diarista e pai desempregado, moradora do bairro Guarapes – um dos mais pobres da Zona Oeste de Natal – a potiguar vai começar o curso de Medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em julho. Mas outras preocupações já chegam: como se manter em um curso que exige dedicação o dia inteiro, investimento em equipamentos e materiais de estudo?
A solidariedade tem sido a resposta. “Já ganhei dois jalecos, dois estetoscópios, livros, materiais para as aulas de instrumentação, muita coisa”, conta a estudante, que ficou surpresa com a atitude das pessoas. “Eu não teria como comprar”, complementa.
Alguns dos presentes foram dos próprios estudantes da universidade, futuros colegas de profissão. “Muita gente legal. Muita gente pra auxiliar, que quer mostrar a universidade. Eles se juntaram e me deram um estetoscópio e esse jaleco também”, mostra. Sobre os livros doados, ela confessa que ainda não contou quantos recebeu.
E ainda há promessas de mais ajuda. A repercussão da aprovação rendeu até uma proposta de emprego para o pai de Raíssa, seu Moisés Afonso, que está sem trabalho fixo há cerca de quatro anos. A felicidade maior dele, no entanto, é pelo sonho alcançado por ela. “É uma alegria grande ver um filho alcançar o que sempre quis. Ela tinha coleções de séries de médico”, lembra.
Enquanto o G1 estava na casa de Raíssa, nesta quinta-feira (6), uma nova amiga chegou. A servidora pública Marize Alves já tinha entrado em contato com a estudante, mas não a conhecia pessoalmente e se colocou à disposição para ajudar. “Achei inacreditável. Para alcançar o que ela alcançou é muita renúncia. Também vim de uma realidade assim e é muito bom mostrar que vale a pena”, diz.
Auxílios
Raíssa é a primeira filha, entre os quatro da família a conseguir entrar em um curso superior. Entre todos os parentes, apenas duas primas já tiveram a oportunidade de conseguir um diploma de graduação. Para se manter durante os estudos, ela também pretende buscar auxílios oferecidos pela instituição, assim como os que conseguiu nos quatro anos do curso técnico de Edificações no Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), onde terminou o ensino médio.
Na instituição, ela recebia uma bolsa de R$ 300, além de auxílio de transporte de R$ 60 mensais e almoço diariamente. “Sem isso, não teria conseguido”. Durante o cursinho preparatório para o Enem, por exemplo, muitas vezes era preciso escolher entre a passagem de ônibus para ela ou para o irmão, Daniel, de 19 anos, que quer fazer o curso de Direito.
Além disso, era preciso gastar três horas diárias no transporte público entre a casa e o local de aula. “Eu aproveitava esse tempo para ler, mas depois comecei a ter dores de cabeça e parei”, diz.
Por razões como essa, a estudante defende das cotas oferecidas pelas instituições públicas de ensino e considera que, se há distorções, é preciso combater o mal uso delas.
“Se não fossem as ações afirmativas eu não estaria aqui. Essa é a verdade. Tem uma dívida histórica sim e ela precisa ser paga. Não é falta de capacidade, falta de querer. É falta de oportunidade mesmo. E são as cotas que possibilitam que a gente consiga entrar na universidade. Tem muita gente que usa indevidamente? Tem. Até porque fui fazer a matrícula e na minha lista tinham 15 negros. Lá tinha algum? Não. Só eu”, declara.
Raíssa ainda afirma que tem o desejo de ajudar na estruturação dos pais e dos irmãos. “Quando, nessa situação, nossos pais investem na nossa educação, nós somos a aposentadoria deles”, considera.