O diagnóstico de covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus, assustou a servidora pública Raissa Azulay, de 37 anos.
Moradora de São Luís (MA), onde nasceu, ela foi o segundo caso confirmado no Estado — atualmente são 293. “Eu não acreditava que o resultado pudesse dar positivo. Havia feito o exame apenas por desencargo de consciência”, relata à BBC News Brasil.
A servidora pública não apresentou quadro considerado grave. Logo após receber o resultado do exame, permaneceu isolada em casa.
Exposição e ofensas
A doença e os sintomas que desenvolveu não afetaram tanto Raissa quanto a repercussão do fato de ela estar com a covid-19.
No dia seguinte ao diagnóstico, o nome de Raissa e fotos dela passaram a circular em aplicativos de mensagens de moradores da região.
A partir de então, a servidora pública, que queria que apenas as pessoas mais próximas soubessem da informação, começou a receber inúmeras mensagens em seus perfis nas redes sociais.
Entre as mensagens, havia textos de apoio de amigos e parentes. Mas ela também foi ofendida por diversas pessoas. No período, inventaram inúmeras mentiras sobre ela nas redes.
“Parecia que eu era a culpada pelo vírus ter chegado ao Maranhão. Começaram a me chamar de irresponsável”, relata.
Hoje, quase um mês após os primeiros sintomas, ela é considerada recuperada da covid-19. “Os médicos disseram que não transmito mais o vírus”, ressalta.
Raissa, porém, ainda não sabe quando perderá o medo de sair de casa. “Tenho receio de que alguém me encontre e venha me acusar de ter passado o vírus para outra pessoa”, desabafa.
A psicóloga Maria de Fátima José-Silva, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que em um contexto de pandemia, como no caso do novo coronavírus, muitas pessoas podem ter a necessidade de criar “inimigos visíveis ou invisíveis” para enfrentar a situação.
“Nesse contexto, surgem medos e o isolamento social revive sentimentos de ‘fantasmas imaginários’, que em períodos regulares são mais fáceis de controlar. Toda essa situação se traduz em comportamentos agressivos contra sujeitos semelhantes”, relata a especialista.
Segundo a psicóloga, o compartilhamento de fotos e críticas a indivíduos com o novo coronavírus pode ser uma forma de tentar achar um culpado para a disseminação de um vírus de rápida propagação em todo o mundo.
A especialista afirma que a necessidade de apontar culpados pode vir da angústia causada durante a pandemia, em razão das incertezas. “O indivíduo não tem uma previsão do término desse período, nem sabe as novas consequências que poderão surgir. É um cenário, por vezes, obscuro”, diz.
Outros ataques
A exposição de nome e fotos de pessoas com o novo coronavírus não é uma situação vivida somente por Raissa. Diversos pacientes passaram por situações parecidas.
Nas redes sociais, circulam relatos de pessoas que foram duramente atacadas por terem contraído o vírus ou enquanto aguardavam os resultados dos exames.
No início de março, a jovem Yasmin Nicolielo, de 26 anos, foi exposta em aplicativos de mensagens após se tornar um caso suspeito para o novo coronavírus.
Ela, que mora em São Paulo, apresentou sintomas de gripe após retornar da Itália, em meados de fevereiro. Ao procurar atendimento médico, foi orientada a permanecer em isolamento.
Nos dias que antecederam o resultado do exame, a jovem viu suas fotos serem compartilhadas nas redes e associadas ao vírus.
“Eu até entendo as pessoas ficarem preocupadas. Mas, para mim, é incompreensível o quanto destilaram ódio gratuito”, escreveu a jovem, em publicação nas redes.
Na época, o Brasil ainda registrava os primeiros casos do novo coronavírus. O resultado dela deu negativo para a covid-19. “Mas podia ter dado positivo. Podia ser alguém da família de qualquer pessoa. Podia ser alguém que não saiu da cidade”, desabafou a jovem nas redes sociais, em postagem de 2 de março, logo após pegar o resultado do exame. No texto, ela pediu respeito.
Desde que foi alvo de ataques nas redes, Raissa conta que foi procurada por outras pessoas que passaram por situações semelhantes.
“Sei de casos de pessoas que também foram discriminadas, ofendidas e expostas por conta do coronavírus em outros estados. É uma situação muito difícil”, declara.
O coronavírus e a repercussão
Raissa sentiu os primeiros sintomas do Sars-Cov-2, como o novo coronavírus é conhecido oficialmente, por volta de 13 de março. “Eram sintomas leves. Tive uma febre baixa e o corpo estava dolorido”, conta.
Dois dias depois, ela procurou um hospital. “Não pensei que fosse covid-19, porque eu não tinha aqueles sintomas mais conhecidos, como febre alta, tosse ou dificuldades para respirar”, detalha.
Ela fez exames que não apontaram a causa dos problemas de saúde. Em razão disso, o médico solicitou que ela fizesse o teste para a covid-19. “Fiz no mesmo dia, 15 de março. Aceitei fazer para tirar a dúvida, mas tinha certeza de que não era”, comenta.
O resultado saiu seis dias depois, em 21 de março: positivo. “Fiquei assustada”, revela. Ela não tinha viajado recentemente e não havia mantido contato com alguém que tivesse sido diagnosticado com o novo coronavírus.
A servidora pública acredita que contraiu o vírus de algum conhecido. “A princípio, pensei que tivesse pegado de um amigo que tinha voltado da Europa dias antes. Mas ele não teve sintomas, nem a namorada dele. Depois, lembrei que eu também havia encontrado outras pessoas que tinham retornado recentemente de viagens. Até hoje não tenho certeza de como contraí o vírus”, explica.
Por não apresentar complicações de saúde graves, Raissa fez o tratamento em casa. Ela ficou isolada em seu quarto, pois mora junto com os pais idosos. Evangélica, pediu a conhecidos que orassem pela sua saúde. “Compartilhei o resultado apenas com as pessoas que eu sei que queriam o meu bem”, pontua.
Ela diz que o seu diagnóstico ficou conhecido por inúmeras pessoas após uma conversa com uma amiga. “Eu contei que estava com o coronavírus e ela pediu para eu escrever uma mensagem para amigos dela que não estavam se cuidando. Eu escrevi que eles deveriam tomar cuidado, porque era real e o vírus já estava circulando no Estado. Ela compartilhou um print da conversa, para alertar esses amigos”, diz. No mesmo dia, a imagem passou a ser compartilhada massivamente, junto com fotos de Raissa.
“De repente, muita gente soube que eu estava com o vírus. Meus amigos me alertaram e pediram para eu trancar minhas redes sociais. Passei a receber muitas mensagens de pessoas querendo saber como peguei e que lugares eu havia frequentado”, relata a servidora pública.
Ela ficou abalada com a situação. “Comecei a me desesperar. Passei a ser chamada de irresponsável por desconhecidos. Não consegui trancar meu perfil no Instagram. Tive que pedir para a minha irmã fazer isso”, conta.
Boatos
Logo que o print da conversa de Raissa passou a circular nas redes, uma página de notícias da região compartilhou o fato. “Um blogueiro fez uma matéria: ‘conheça a patricinha que estava espalhando o vírus em bares de São Luís’. Ele mencionou o meu nome e disse que eu era irresponsável”, comenta. Ela conta que após a publicação passou a receber ainda mais mensagens e críticas.
Diante da repercussão, ela planeja processar o responsável pela página. “Ele usou uma foto antiga minha e deu a entender que eu tinha saído estando com o vírus. Isso fez com que eu fosse mais atacada”, declara.
“Desde que tive os primeiros sintomas, não saí mais. Por mais que não acreditasse que pudesse ser o coronavírus, sabia que a melhor alternativa naquele momento era ficar em casa”, diz.
Após o nome de Raissa passar a circular nas redes, surgiram diversos boatos relacionados a ela. Diziam que ela pegou o vírus de um namorado francês e até que a servidora tinha morrido em decorrência da covid-19. “Inventaram muitas coisas”, lamenta.
Em meio aos boatos, as ofensas nas redes sociais eram apagadas pelos irmãos dela, que tentavam poupar Raissa. “Pouco depois que eu peguei o exame, tive uma piora no meu estado de saúde. Estava fraca e com falta de ar. Então, meus irmãos queriam evitar que eu visse tudo o que estavam falando para que não ficasse pior”, relata.
“Uma coisa que foi muito importante para enfrentarmos tudo isso foi a nossa fé”, afirma Raissa.
No início de abril, mais de duas semanas depois de começar a ter os sintomas, os médicos consideraram Raissa como uma paciente recuperada.
“Falaram que posso voltar às minhas atividades, com os cuidados normais da quarentena”, diz. Segundo eles, ela não tem mais o vírus. “Mas ainda não consegui fazer o teste. O problema é que há poucos exames e são destinados a pessoas mais graves”, esclarece.
Ao ser informada sobre a sua recuperação, Raissa foi alertada por um psicólogo que a acompanhou. “Ele disse para eu tomar certo cuidado e evitar alguns lugares, porque como meu nome vazou, eu posso ser insultada”, relata.
‘Me sinto um pouco culpada’
O sentimento de culpa fez parte da vida de Raissa por diversas vezes nas últimas semanas. “Eu cheguei a me sentir a responsável pelo vírus aqui no meu Estado, porque tudo que comentavam sobre mim me fez acreditar nisso”, diz.
“Sei que não fui a responsável por trazer o vírus pra cá, até porque eu peguei sem nem ter saído daqui. Mas às vezes, por alguns instantes, ainda sinto um pouco de culpa por ter sido infectada”, declara.
O sentimento de culpa aumentou quando o pai de Raissa, de 76 anos, apresentou sintomas da covid-19. “Foi muito triste. Pensei: meu Deus, eu passei pra ele”, diz.
Ele, que tem problemas cardíacos, foi internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) com quadro de saúde semelhante ao de pacientes com o novo coronavírus. “Ele ficou seis dias na UTI, mas graças a Deus melhorou. Hoje está em casa e bem”, relata. O exame dele ainda não ficou pronto.
Raissa considera que a repercussão negativa de ter seu nome divulgado foi pior que os sintomas que teve com o novo coronavírus.
“Descobri que existe muita gente ruim. Fiquei com trauma de tudo isso. O vírus não causou tantas dificuldades para mim como os ataques que recebi.”
A psicóloga Maria de Fátima comenta que as ofensas e a exposição podem levar a torturas emocionais. “Isso pode causar desencanto pela vida cotidiana ou até rejeição dos tratamentos. Essas pessoas podem se excluir das atividades profissionais, econômicas e sociais. Ou seja, a pessoa acaba em isolamento parcial ou total”, diz a especialista.
Para enfrentar tudo o que viveu nas últimas semanas, Raissa considera que o apoio de familiares e amigos foi fundamental. “Muitas pessoas me defenderam. Percebi que existe muita gente boa também. Por muitas vezes, me senti muito amada. Isso me fez enfrentar melhor tudo isso. Se não houvesse esse apoio, tudo seria mais difícil”, relata.
Mesmo com o apoio, Raissa não planeja sair de casa nas próximas semanas. Ela continua isolada, junto com os pais e a irmã. “Em algum momento, principalmente quando a situação do vírus no país melhorar, precisarei sair. Mas ainda tenho muito receio. Tenho medo de ficar marcada como uma pessoa irresponsável, mesmo não tendo sido”, diz.