Enquanto o comerciante Peterson Barbosa, responsável por um bar em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, se preocupava em cortes na folha de pagamento e em respeitar as regras da quarentena, o cabeleireiro Dejair Batista, na Brasilândia, bairro periférico da zona norte, abria as portas de seu salão, ilegalmente, por um motivo primordial: não morrer de fome.
Os dois estão distantes apenas 20 quilômetros, mas vivem realidades completamente diferentes na mesma cidade: São Paulo, que tem mais de 12 milhões de habitantes e é o epicentro do novo coronavírus no Brasil.
O isolamento social nos dois bairros é cumprido de formas distintas. Pinheiros está com o comércio não essencial fechado, e dificilmente se encontra moradores da região nas ruas. Já a Brasilândia vive situação oposta, com bares, salões de cabeleireiro e vendedores ambulantes na ativa, e muita aglomeração de pessoas nas ruas.
Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, Pinheiros tem 18 vítimas por Covid-19 registradas, um dos menores índices de mortalidade de São Paulo. Já a Brasilândia é o bairro com o maior número de mortes: 109 confirmadas até o momento.
Seu Dejair, como é conhecido, cabeleireiro há 25 anos, conta sobre seu cotidiano.
“Tá osso, viu”, disse ele ao nos receber, com o salão entreaberto, olhando preocupado para a rua com medo de ser pego pela fiscalização da prefeitura. “Não tem nada em casa, tem que trabalhar, né. Se você ficar em casa você vai morrer de fome. Então, nós temos que trabalhar de algum jeito, ou fechado ou aberto, atende um, atende outro… e por aí vai”, conta. “A gente ainda tem uma despensa lá em casa com um pouquinho de alimentação e vai se virando, mas já tá acabando. Tá muito difícil”, lamentou.
Dejair mora com a irmã e a sobrinha, sustentadas pelo trabalho dele como cabeleireiro. Ele conta que a clientela diminuiu 60% desde o início da pandemia. O que ele ganha agora serve apenas para comprar o básico.
“Pagamento de conta está tudo atrasado. Do mês passado, desse mês… não tem nada. Se cortar minha luz eu faço gato, não tem como ficar no escuro. Gato de água, de luz. Se eu pudesse escolher estava em casa, mas tem que sair, não tem jeito”.
Próximo do salão de Dejair, o dono de um bar, Paulo Viana, vive a mesma situação. As portas estão abertas, sem cumprir as regras da quarentena, para pagar as contas.
“Conta de luz chega no fim do mês, aluguel, água também. Não tenho como ficar de portas fechadas. Preciso pagar as contas e comer também”, explica.
Além de comerciantes, na Brasilândia há também uma população considerável de autônomos que estão sem trabalho, ou de empregados que foram demitidos em meio à crise gerada pela pandemia do novo coronavírus. Muitos não têm de onde tirar dinheiro. Por esse motivo, a reportagem encontrou diversas filas e aglomerações em bancos e casas lotéricas. Foi em uma longa fila da Caixa Econômica Federal da rua Parapuã, uma das principais vias da Brasilândia, para sacar o auxílio emergencial do governo federal, de R$ 600, que estava o músico Jeferson Ventura.
“Eu vim para receber o auxílio do governo. Pra ver se dá uma ajuda pra gente nesse tempo de pandemia, sem poder trabalhar, ganhar dinheiro. Eu trabalho como autônomo. No momento tá difícil de arrumar dinheiro. Ao mesmo tempo, a gente tá sujeito aqui no meio desse monte de gente para resgatar nosso dinheiro…. num bairro onde tem um índice muito grande da doença. É uma situação muito difícil a que estamos vivendo”, reclamou.
Em outro endereço, na rua São Gonçalo do Abaeté, a empregada doméstica Nair Barbosa, de 63 anos, que está no grupo de risco para a doença, esperou mais de uma hora na fila de uma casa lotérica para sacar o auxílio emergencial, e voltou para casa sem nada. Enquanto esperava na fila, de máscara, outras pessoas se aglomeravam em seu entorno, muitas delas sem fazer o uso da máscara.
“Tá sem sistema. Só para pagamentos de outras contas. Pior que eu vou embora pra casa e depois volto. Vou voltar à tarde”, disse, com cara de lamentação.
A Brasilândia é um dos bairros mais populosos de São Paulo, com mais de 260 mil habitantes. A área é constituída, em grande parte, por favelas, cortiços e núcleos habitacionais. As primeiras moradias começaram a ser erguidas na década de 1940, de acordo com documentos oficiais da Câmara Municipal de São Paulo.
O bairro tem 17 unidades básicas de saúde, que atendem, em média, 23 mil pessoas por mês. Mas como em outras regiões pobres da capital paulista, não conta com hospital público próprio. A deficiência no atendimento médico, no entanto, parece não assustar os moradores. A CNN encontrou, além das aglomerações já citadas, crianças soltando pipa nas ruas, pontos de ônibus lotados, homens jogando dominó em espaços públicos, academias de ginástica abertas e até piquenique em praça pública.
“Nós sentamos aqui um pouquinho porque dentro de casa não dá pra ficar, tá um calor. O que trouxemos aqui é comida, viemos fazer um lanchinho”, disse Eunice Costa, moradora da região, acompanhada do marido e de um amigo.
O gesto simples dos amigos, de se reunir na praça no fim da tarde, revela uma outra faceta da Brasilândia. Lá, as pessoas também estão nas ruas porque suas casas são pequenas, com pouco conforto, e a convivência entre diversas pessoas da mesma família num único cômodo nem sempre é das melhores.
Uma outra moradora que encontramos sentada na rua com crianças e amigos descreveu a Brasilândia da seguinte forma: as moradias são precárias, falta lazer, cultura e o saneamento básico é escasso. Com isso, as pessoas saem paras as ruas. A aglomeração é natural. “Isolamento para nós é lavar as mãos, usar máscara diariamente. Porque isolamento dentro da nossa própria casa é difícil, a gente mora com três, quatro filhos. É neto, filho que entra, que sai toda hora. A gente gostaria de fazer isolamento, mas é muito difícil. As casas são pequenas, não tem como se isolar. Isso não existe aqui. Só em bairro rico”, disse a desempregada Giane de Oliveira.
A cantora Beatriz Ribeiro, também moradora da Brasilândia, sofreu na pele as consequências do novo coronavírus. Ela, a irmã e a mãe, que faz parte do grupo de risco, foram contaminadas. “As três foram logo na sequência, com diferença de três, quatro dias. Então, pra gente foi um drama muito difícil”, conta. Beatriz acredita que contraiu a doença de uma visita que recebeu em casa. Ela alerta sobre a gravidade da doença. “As pessoas não estão acreditando que a doença pode chegar até elas, que é tão grave. Elas não imaginam. A luta contra essa doença é muito dolorosa”.
O avanço do novo coronavírus, sobretudo na periferia da cidade, preocupa as autoridades locais. O secretário de Saúde de São Paulo, Edson Aparecido, diz que o aumento das mortes na periferia, especialmente na Brasilândia, está relacionado a uma baixa adesão ao isolamento social recomendado pelas autoridades.
“O processo de disseminação é amplo. Começou com o chamado vírus importado, por pessoas com melhores condições. Quando ele foi para a periferia o resultado é esse que estamos vendo. Entrou pela classe média, mas onde as pessoas estão morrendo é na periferia da cidade. Por isso é importante o isolamento”, destacou.
Já a epidemiologista Beatriz Tess, professora da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), explica que, por causa das condições de desigualdade social do Brasil, a chegada do vírus à periferia já era esperada pelos profissionais da saúde.
“Há uma heterogeneidade muito grande na cidade de São Paulo, com relação a equipamentos de saúde, hospitais, a presença de unidades de terapia intensiva. Então, é todo um conjunto, é uma complexidade de fatores desfavoráveis que, sim, fazem com que as pessoas menos favorecidas adoeçam e provavelmente tenham um quadro mais grave da doença do que as pessoas que moram em áreas mais ricas. Isso é um fenômeno bastante conhecido e estudado na área da saúde. Então eu acho que, infelizmente, era algo previsível.”, explica.
Para a epidemiologista, a desigualdade social em São Paulo, a partir de agora, tende a ficar mais visível para toda a população. “Talvez, se a gente conseguir ter um olhar mais positivo dessa pandemia, as pessoas que não estão acostumadas a ver essa desigualdade tão brutal, elas agora vão começar a perceber, vai ficar mais visível. Porque muitas vezes essa desigualdade é invisível para a gente que circula nos bairros mais ricos, e a gente não sabe o que acontece na periferia”, complementou.
REALIDADE OPOSTA
Do outro lado da ponta, Pinheiros vive outra realidade, com baixos índices de contaminação e isolamento social seguido à risca. O bairro abriga badalados bares e restaurantes, todos de portas fechadas. O comércio não essencial está fechado. Bares e restaurantes, apenas para entregas delivery. E quem segue na linha de frente quase sempre não é morador da região. “Eu sou de Itapevi, na Grande São Paulo, e eu tô na rua porque não tenho outra fonte de renda. Se eu não vir trabalhar e fazer entrega eu não pago meu aluguel e não como. E se esperar do governo, passo fome”, disse o entregador Lucas Gimenez, que faz as entregas com uma bicicleta.
Moradora do bairro há 35 anos, a aposentada Fátima Neves nunca tinha visto uma calmaria dessas. Ela só saiu de casa porque precisava pagar umas contas e fazer compras. Sempre de máscara. “Aqui tinha uns bares que a gente sentava e assistia futebol… eu gosto muito de futebol. Tudo isso faz muita falta. Eu tenho assistido filmes, mas o que sinto falta mesmo é de namorar (risos). Tem que respeitar o isolamento”.
Num dos endereços mais boêmios da capital paulista, a cena é assustadora. O cruzamento da rua Fidalga com a Aspicuelta, na Vila Madalena, que nos finais de semana fica abarrotado de pessoas, está completamente vazio. Os bares e restaurantes da região estão todos de portas fechadas desde o início da quarentena em São Paulo, no dia 24 de março.
Uma das poucas exceções é o comércio do Peterson, do início da reportagem. Ele conta que no local, onde antes trabalhavam dezenas de pessoas, hoje apenas duas se revezam em todo o estabelecimento. As vendas caíram mais de 90%.
“Aqui na calçada ficava tudo cheio de mesa, você não via o chão de tanta gente que tinha. Agora tá tudo vazio. A realidade é essa, infelizmente”. Segundo ele, o estabelecimento só não fechou as portas por causa dos pedidos por aplicativo.
“É mais delivery, né. Mas não tem mais vida noturna. À noite, que é o glamour da Vila Madalena, não tem mais. Eu nunca imaginei isso… ter de se fechar em casa, se isolar, deixar de abraçar, cumprimentar, não ver mais o rosto das pessoas. É difícil, acho que nem em filme alguém imaginou isso”, disse.
A concentração de renda no Brasil é uma das mais altas do mundo, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas). Quase um terço de toda a riqueza do país está nas mãos de 1% da população. Uma diferença social que expõe ainda mais a população pobre diante da pandemia do novo coronavírus.