A barista Ana Flávia Gomes, de 20 anos, conheceu Ricardo, 47, nas redes sociais. No primeiro encontro, durante a quarentena, combinou de encontrá-lo sem saber que ele não só tinha sintomas do novo coronavírus como estava com o teste agendado para a manhã seguinte. Ele transmitiu o vírus para ela, que contaminou seu filho, sua mãe e uma colega de trabalho.
“Conheci Ricardo, em dezembro do ano passado, nas redes sociais. Apesar de ser português, mora em Barcelona, na Espanha, mas mantém uma casa aqui em Lisboa, onde moro há dois anos. No dia 13 de março, ele chegou na cidade e insistiu para nos conheceremos pessoalmente. Estávamos entrando em quarentena, ainda sem noção do que viria pela frente. Mas ele disse que não sabia quando estaria de volta a Portugal e acabei topando. Combinamos então que ele me buscaria em casa e, de lá, iríamos para direto para a casa dele. Já no carro, notei que ele estava com uma coriza que, segundo ele, era alergia, nada importante. Já em sua casa, me disse sentir uma leve dor no corpo, mas, como já estava ali, decidi curtir o momento. Namoramos a noite toda, e dormi em seus braços.
Quando acordamos, ele disse que sua cabeça estava doendo e a coriza havia nitidamente aumentado. Tendo em vista que ele veio da Espanha, que, naquela época, já contabilizava um enorme número de casos e mortes por Covid-19, fiquei bolada. Ele falou então que tinha um exame de sangue para fazer à tarde e, depois do café da manhã, me deixaria em casa. Fiquei ainda mais ensimesmada. Será que Ricardo suspeitava estar contaminado e não havia me contado nada com medo de eu desmarcar o date? Não podia ser.
Um dia depois, comecei a sentir dores leves de cabeça e no corpo, mas trabalhei normalmente. No outro, comecei a ter calafrios e uma leve falta de ar. Trabalhei na marra, mal me aguentava ficar em pé e, quando cheguei em casa, tive febre alta. Comentei em casa, mas ninguém levou muito a sério. Resolvi então chamar a emergência médica. Eles me atenderam com descaso e, acreditem, sequer suspeitaram do maldito vírus, mesmo com todos os sintomas relatados. Avisei à minha chefe que não estava me sentindo bem, e ela pediu que eu ficasse em casa até melhorar. Ninguém ainda imaginava que podia ser Covid-19, eu também não queria acreditar nisso. Mas, por precaução e como minha suposta gripe estava cada vez mais intensa, me isolei dentro da minha casa, onde moro com minha mãe, meu filho, minha irmã e meu sobrinho.
Nesse meio tempo, no dia 18 de março, Ricardo me mandou uma mensagem de voz dizendo que havia testado positivo para Covid-19. Quase cai pra trás. Minha vontade era esmurrar o telefone. Em vez disso, porém, concentrei minhas energias em convencer a emergência médica de que não estava bem. De nada adiantou. Até a ambulância tentei chamar, mas a pessoa que me atendeu me chamou de mentirosa. Disse que o vírus ainda mal tinha chegado em Portugal e desligou o telefone na minha cara.
Decidi então ir até o hospital mais próximo. Chegando lá, os médicos tiraram a minha temperatura e pediram alguns exames. O pulmão estava limpo; minha oxigenação sanguínea, idem. Por último, fiz o exame do Covid-19 e fui liberada.
Aguardei o resultado isolada no quarto, durante longos três dias. Minha família agora estava apreensiva e seguia todas as medidas de proteção possíveis. Saía do banheiro e já vinha minha mãe desinfetando tudo. A comida era deixada na porta do meu quarto e toda a minha roupa, lavada a 60 graus.
Quando saiu o resultado, fiquei em choque. Aos 19 anos e com um filho de 2, asmática e já tendo passado por oito pneumonias, tinha em mãos um teste positivo para o novo coronavírus. Chorei muito, com medo do que me aconteceria. E começou de fato a minha luta. Só tomava sopas, comia legumes e ingeria bastante água para me hidratar. Sentia cada vez mais dores, e só podia tomar paracetamol. Meu médico me ligava a todo instante. Tínhamos, minha família e eu, que medir a temperatura a toda hora e informar a sua equipe por telefone. Minha mãe me jogava na cara a minha irresponsabilidade, que sei que foi grande, o tempo todo.
Ricardo seguia me ligando e mandando mensagens. Disse que continuava com muita febre, ficou vários dias assim. Mas em momento algum me pediu desculpas pela canalhice que fez de não ter me contado que, no nosso primeiro encontro, já estava com suspeita de contaminação.
Um dia depois, meu filho apresentou os primeiros sintomas. Aí meu coração apertou de verdade. Achei que ia morrer de preocupação e culpa. No mesmo dia, minha mãe também começou a tossir. Em seguida, minha irmã e meu sobrinho. Depois fiquei sabendo que uma amiga do trabalho também estava com tosse. Por sorte, ninguém teve nada mais grave. Mas eu, que sabia ter infectado todo mundo, fiquei péssima.
E minha saúde só piorava. Muito fraca, já não conseguia mais tomar banho sozinha. Para comer era outra dificuldade. Tinha que me alimentar sempre dando longas pausas entre uma e outra garfada. O médico, que me monitorava por telefone, quis me internar, mas resisti. Tinha medo de piorar ainda mais no hospital.
Em casa, pensava que podia morrer por causa de uma irresponsabilidade, um date que quase destruiu a minha vida. Temia não resistir e deixar um filho pequeno sem mãe. Sozinha naquele quarto, trabalhei muito o meu psicológico para não pirar. Mantive minha fé também.
Até que no dia 15 de abril, quase um mês depois, dei uma leve melhorada e repeti o exame. Mas o vírus continuava ativo. Meu médico fez uma reunião virtual comigo e, como eu me recusava a ser internada, a equipe dele concordou em me dar uma medicação e um coquetel de vitaminas. O combinado era que, caso os remédios não fizessem efeito nos próximos dias, seria internada.
Do quarto, escutava o choro do meu filho pedindo meu colo, sem poder me ver. Fui me segurando assim por duas, três semanas. Melhorando aos poucos, até me sentir de fato bem. No dia 8 de maio, fiz o terceiro teste e, finalmente, deu negativo. Ao mesmo tempo que gritava de felicidade, chorava feito criança. Recebi a notícia um dia antes do meu aniversário de 20 anos – tipo de presente que nunca vou esquecer.
Costumo dizer que se arrependimento matasse, eu já estaria morta e estirada no chão. Minha falta de noção quase me matou. Brinquei com a minha vida e com a de muitos por pura irresponsabilidade e capricho.
Durante esses dois meses doente e reclusa, repensei toda a minha existência. Tive muito medo de morrer. Meu pensamento, antes imediatista, mudou completamente. Apesar de envergonhada por ter ameaçado vidas por um capricho, assumi totalmente o meu erro e me desculpei com todos. Minha mãe e minha irmã brigaram muito comigo. E eu, simplesmente, abaixei a cabeça e escutei.
Ainda não me perdoo por ter colocado tantas vidas em risco por causa de uma noite de prazer. Acho que nunca vou me perdoar.
Quanto a Ricardo, nunca mais o vi. Não quero mais nada com ele, nem contato. Sigo afastada do meu trabalho e, mesmo curada, ainda tenho receio de sair de casa. Aconselho a todos que podem a seguirem à risca o isolamento social. Custa menos do que ver um ente querido no hospital, entubado, morto. E pesa menos que a consciência.”