Ao cruzar a marca de 1 milhão de casos confirmados de Covid-19, o Brasil vive um momento da epidemia em que atingiu um platô bastante alto de casos e óbitos e sem perspectiva clara de redução, uma vez que o retorno das atividades econômicas sem um encolhimento da curva deve manter ativa a disseminação da doença no país, disseram especialistas.
O Brasil se tornou nesta sexta-feira (19) o segundo país do mundo a romper a barreira de 1 milhão de casos da doença respiratória provocada pelo novo coronavírus, atingindo 1.032.913 infecções, atrás apenas dos Estados Unidos. Em comparação, o terceiro país com mais casos é a Rússia, que tem menos de 600 mil infecções registradas.
Ao longo das últimas semanas o Brasil se tornou o lugar do mundo com maior aceleração da doença, registrando quase que diariamente mais casos e mais óbitos do que os EUA. Nas últimas cinco semanas, o total de mortes registradas por dia no país girou em torno de 1.000 durante a semana — nos finais de semana há uma queda devido a atrasos de notificação.
Com esse patamar de mortes e com o número de casos registrados girando em torno de 25 mil por dia, o Brasil parece ter chegado a um platô, com números que se mantêm altos.
“Estamos em um platô perigoso”, disse à Reuters o pesquisador Christovam Barcellos, do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz. “Na maioria dos países a curva começou a decrescer depois de bater mil mortos por dia, mas no Brasil não.”
Apesar de algumas cidades grandes terem de fato registrado redução na velocidade de transmissão e no número de pacientes internados por Covid-19, a interiorização da doença tem impedido o país de alcançar uma redução da epidemia. De acordo com o Ministério da Saúde, 82,4% dos municípios brasileiros já foram atingidos pela Covid-19 e 59% do total de casos foram notificados no interior, apesar de a doença ter chegado ao país pelas capitais, em especial São Paulo e Rio de Janeiro.
Como as cidades menores têm redes de saúde ainda mais precárias que as capitais, pessoas que contraem o vírus no interior costumam buscar atendimento médico nas metrópoles, levando o vírus de volta e mantendo uma tendência de transmissão continuada, de acordo com o pesquisador.
“Como esse trânsito de pessoas não para, o que a gente vê é que vai se manter um platô alto de transmissão que pode levar muitos meses ou até anos. Enquanto não tivermos uma vacina ou tratamento, a tendência é continuar assim”, acrescentou.
Na quarta-feira, o Ministério da Saúde estimou pela primeira vez que o Brasil pode estar caminhando para uma estabilização da epidemia, mas ressaltou que é preciso aguardar as próximas semanas. A OMS (Organização Mundial da Saúde) também apontou para uma estabilidade no Brasil, destacando, no entanto, que a pandemia ainda é “severa no país”.
DE 3 A 10 MILHÕES
Ainda que emblemática, a marca de 1 milhão de casos na verdade pode ser subestimada, uma vez que desde o início da pandemia o Brasil enfrenta uma grande dificuldade para a realização de testes da Covid-19.
O ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, reconheceu na semana passada que o país não vai conseguir cumprir a meta de processar mais de 40 milhões de testes de coronavírus até o final do ano. Originalmente, a meta do ministério era de realizar 46 milhões de exames, sendo 24 milhões de testes moleculares e outros 22 milhões de testes rápidos, até o final de 2020.
“Esse número de 1 milhão é muito inferior ao real número de casos de pessoas que foram expostas, porque existe uma subnotificação na ordem de 5 a 10 vezes, devido ao fato de a testagem não ser feita de forma realmente ampla. Esse número possivelmente é superior a no mínimo 3 milhões, podendo chegar a 10 milhões de pessoas”, disse o infectologista Alexandre Naime Barbosa, professor da Faculdade de Medicina da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
“Estamos com mil mortos por dia e nós não temos a menor ideia de quando isso vai diminuir. É um platô que pode ser que suba ou que fique nesse número e caia só mais para frente”, acrescentou.
Parte do problema enfrentando atualmente pelo país se deve à falta de uma coordenação no âmbito nacional em defesa das medidas de prevenção da disseminação, em especial sobre o isolamento social, de acordo com os especialistas.
Enquanto governadores e prefeitos impuseram quarentenas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sempre se manifestou contra as medidas de distanciamento e chegou a chamar a Covid-19 de “gripezinha”, afirmando que os impactos econômicos da paralisação seriam piores do que os efeitos da própria doença.
Diante da pressão política e econômica, locais que estavam em quarentena começaram a afrouxar as medidas mesmo sem observarem queda sustentada das infecções, o que representa um risco de continuidade da doença por um longo período à frente.
Médicos na linha de frente do enfrentamento, que há meses lidam com pacientes entre a vida e a morte devido à Covid-19, ressaltam a importância de se evitar ao máximo os riscos de contaminação, podendo haver uma nova onda que se juntaria com a primeira.
“A gente acredita em uma nova onda após a flexibilização”, disse Ricardo Langer, médico do Grupo Hygea, que trabalha no hospital de campanha do Maracanã, no Rio de Janeiro.
“Para flexibilizar teríamos que ter três fatores: reduzir os números de casos pelo menos por duas semanas, queda durante duas semanas de número de mortes e o terceiro ponto, que vai ser a parte mais difícil, que são testes em massa. No Brasil a gente não tem isso pra começar a pensar em flexibilização.”
Apesar da preocupação dos profissionais de saúde, ao lado do hospital onde Langer trabalha o futebol brasileiro voltou a ser disputado na noite de quinta-feira, com uma partida do Flamengo no estádio do Maracanã. Ainda que sem público, o jogo provocou aglomeração de torcedores do lado de fora para saudar o time.