A saída de mais dois membros da equipe econômica de Paulo Guedes reforçou preocupações de investidores e analistas sobre a trajetória e a sustentabilidade fiscal do governo.
Os gastos extraordinários estimados em R$ 512 bilhões neste ano vão fazer a dívida pública saltar para o equivalente a mais de 90% do Produto Interno Bruto (PIB) no fim do ano, um nível inédito em decorrência dos efeitos da pandemia do novo coronavírus.
São gastos explicados em sua maioria pelo pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 a mais de 60 milhões de pessoas desde abril, ao socorro financeiro a Estados e municípios e aos programas para manutenção do emprego e da renda no setor privado.
O cenário fiscal adverso passou a levar alguns investidores a questionar a sustentabilidade da dívida brasileira e a consequente conveniência de colocar recursos em títulos do Tesouro Direto no atual momento. Ou seja, em financiar o governo brasileiro em um contexto de maior imprevisibilidade das finanças públicas.
Para as economistas Camilla Dolle e Rachel de Sá, da XP Investimentos, essa é uma preocupação que, na conjuntura atual, não encontra respaldo nos dados da dívida.
Dolle e Sá analisaram um conjunto de informações que incluem o perfil da dívida pública, a evolução dos juros de mercado na esteira de medidas aprovadas nos últimos anos e o histórico de economias com nota de crédito semelhante ao do país para chegar à conclusão de que o risco de um calote hoje é muito baixo.
“Os avanços institucionais e as ferramentas disponíveis ao gerenciamento da dívida não podem nem devem ser negligenciados, mesmo diante de grandes riscos como os observados hoje na frente fiscal”, escrevem no artigo “Pandemia faz dívida pública saltar no Brasil: há chance de calote no Tesouro Direto?”
Uma das razões para a redução dos riscos, argumentam, é a redução da parcela da dívida emitida em moeda estrangeira ou atrelada ao câmbio, algo que, em patamares elevados, aumenta a fragilidade do país, como acontece na Argentina. No Brasil, essa parcela é inferior a 10% e é coberta pelas reservas internacionais em moeda estrangeira, uma situação confortável que destoa da vulnerabilidade dos anos 80 e 90.
A diversificação de credores (bancos, fundos de previdência e de renda fixa, pessoas físicas, seguradoras, estrangeiros etc.) e de prazos (em boa parte superiores a cinco anos) também torna a dívida atual muito mais administrável desta vez em comparação a crises passadas, escrevem.
A IMPORTÂNCIA DO TETO
Por fim, Dolle e Sá apontam os avanços institucionais recentes, como a criação da Lei do Teto dos Gastos, a mudança nas taxas de juros dos empréstimos do BNDES e a aprovação da reforma da Previdência, todas a partir de 2016. Foram medidas que tornaram possível a redução das taxas de juros de curto e longo prazo.
“Apesar de não reverterem o quadro de alto endividamento como proporção do PIB no curto prazo, as reformas de cunho fiscal foram bem-sucedidas em sinalizar um compromisso com a manutenção da saúde das contas públicas no longo prazo por meio de um ajuste gradual”, apontam as economistas da XP.
Rachel de Sá conta que alguns clientes da corretora comparam a situação atual com o de momentos passados de crise e que ela busca esclarecer por que é diferente desta vez. “A situação não está tão deteriorada como alguns pensam”, pondera.
Para Camila Dolle, a preocupação expressada por alguns investidores com um possível calote nos títulos não encontra respaldo no mercado, citando que houve um fechamento da curva de juros na medida em que tanto a pandemia como os seus efeitos sobre a economia passaram a ficar mais conhecidos.
O fechamento da curva de juros é o nome dado para o movimento em que o mercado passa a projetar juros futuros mais baixos, em uma avaliação de que os riscos de não pagamento da dívida passam a ser reduzidos e que, portanto, isso exige taxas menores oferecidas pelo governo para se financiar. “Os juros futuros estão refletindo as expectativas e os riscos de forma adequada”, avalia Dolle.
RISCO DE CRÉDITO
As duas economistas contam que tiveram como motivação buscar esclarecer os riscos reais de perda do investimento por meio do Tesouro Direto diante desse temor de parte dos clientes.
“Curiosamente, esse receio não se apresenta da mesma forma para outras classes de ativos, o que pode ser até pouco racional, uma vez que o Tesouro Nacional tem o mais baixo risco de crédito dentre os ativos do país”, escrevem.
Diante de acontecimentos mais recentes como a “debandada” na equipe de Paulo Guedes, com a saída de quatro integrantes da equipe econômica, Rachel de Sá faz uma ressalva: “Pode haver uma piora significativa do risco se forem confirmados receios de que as políticas contracíclicas (ou seja, de aumento de gastos na crise) do governo vão se tornar definitivas”, afirma.
Mas em seguida ela emenda: “Haveria um impacto na curva de juros, mas é importante não confundir com um impacto na solvência do país”.