Conheça as histórias de Mirandinha, o primeiro brasileiro a jogar no futebol inglês

Arte FOX

Ao todo, 60 jogos e 21 gols marcados. Entretanto, o legado deixado pelo brasileiro Francisco Ernandi Lima da Silva foi muito maior que qualquer partida ou redes balançadas. O popular Mirandinha, que vestiu camisa de clubes como Palmeiras, Botafogo, Cruzeiro, Santos e Corinthians, além da Seleção Brasileira, é conhecido por ter sido o primeiro brasileiro a jogador no futebol inglês.

Em entrevista ao FOXSports.com.br, Mirandinha, que atuou no Newcastle entre os anos de 1987 e 1989, disputando duas temporadas pelo alvinegro do St. James Park, falou sobre sua chegada ao clube, a adaptação à cultura e ao futebol inglês, as histórias curiosas que colecionou no clube, as amizades e a idolatria que tem até os dias atuais.

Antes de chegar ao Newcastle, Mirandinha defendia o Palmeiras. O brasileiro contou que todo o processo de negociação com o clube inglês teve diversas peculiaridades. Desde vários intermediários até desfazer acerto com equipe para ir à Inglaterra.

“A minha negociação com o Newcastle teve várias peculiaridades que não acontecem mais no futebol do mundo inteiro. Jogava no Palmeiras, na Seleção Brasileira. Joguei o pré-Olìmpico em 1987. E, um amigo meu, filho de um conselheiro do Palmeiras, que fazia intercâmbio na Inglaterra, o pai dele começou a mandar material meu jogando pelo Palmeiras. Vídeos, jornais. Ele morava na casa de um senhor chamado Don Packham. Esse senhor tinha uma ligação com o empresário do Nigel Mansell, chamado Bev Walker, e eles foram trocando material. O Walker fez o material chegar ao Newcastle através do Malcolm Macdonald. O tempo foi passando, eu lembro bem que na semana que eu fui negociado com o Newcastle, no final de semana, em um domingo. No sábado eu tinha sido negociado com o América-MEX. O Palmeiras fez um jogo no Pacaembu, eu fiz dois ou três gols. O presidente do América-MEX estava no estádio me observando e concretizou a negociação comigo e com o Palmeiras. No domingo, veio a confirmação do interesse do Newcastle. Tive que desfazer a negociação com o América-MEX e concretizar com o Newcastle. Mas, nem de longe, se passava na minha cabeça de ir jogar no futebol inglês. Até porque a entrada era restrita, os ingleses davam mais importância aos atletas do Reino Unido, até da facilidade de idioma, estilo de jogo. Com essa negociação eu me tornei o primeiro brasileiro a jogar na Premier League”, afirmou.

ADAPTAÇÃO AO FUTEBOL INGLÊS

Para um jogador recém-chegado à Europa, é normal passar por um período de adaptação, podendo até ser emprestado a outros clubes. Mas, para Mirandinha, era tudo completamente novo. Afinal, o brasileiro, que hoje trabalha como treinador, era o primeiro a chegar à Inglaterra para defender um clube da antiga Premiership. Para ele, a adaptação foi facilitada por alguns fatores.

“Em relação à minha adaptação, tive a facilidade de encontrar pessoas incríveis que me ajudaram muito. Como foi o caso do David McCreery, que morava próximo onde fui morar. Me dava carona todos os dias ao centro de treinamento. Foi me ensinando as palavras, porque aprendi pouco inglês. Quando fui negociado com o Newcastle, tentei estudar um pouco em São Paulo para não chegar sem saber nada”, disse Mirandinha que, em seguida, falou sobre a adaptação dentro de campo.

“Em relação à adaptação no campo, não tive tanto problema porque peguei um time muito bom. Como era o caso do Glenn Roeder, zagueiro e nosso capitão. Tinha o Neil McDonald, lateral-direito da seleção inglesa olímpica. O David era nosso carregador de piano na frente. E o Gazza, que era o cérebro do nosso time. Com isso, fui facilitado. Logicamente, os problemas que aconteceram foram mais de ordem cultural da Inglaterra, onde os jogos você joga às 18h, fica em casa, se concentra no hotel, faz uma alimentação balanceada. Logo eu comecei a ir na cozinha dos hotéis pedir para incrementar com um pouco mais de arroz, que lá não é comum, uma batata cozida com filé de frango. Só que aí trouxe um grande problema que vários jogadores vinham querer a minha comida. Principalmente o Gazza, que era o mais extrovertido do grupo. Comecei a introduzir timidamente e aos poucos o hábito do inglês comer um pouco mais, porque a gente que jogou tantos anos, a gente sabe que o jogador queima muito combustível. E, se não se alimentar bem antes dos jogos, o combustível acaba e o organismo não reage adequadamente a um atleta de alto rendimento. Tanto é que eu tinha visitas diretas na minha casa do Gazza, do David, para comer da comida brasileira”, completou.

Mirandinha não esconde o orgulho de ser o primeiro brasileiro a jogar no futebol inglês. O ex-atacante também carrega com amor a passagem pelo Newcastle que, para ele, tem um ‘atmosfera diferente’ comparado a outros gigantes ingleses.

“Tenho muito orgulho de ter sido o primeiro brasileiro a jogar na Premier League e jogar no Newcastle, porque é um time que marca. Hoje em dia podem pensar em Manchester City, Manchester United, Liverpool, Tottenham. Mas o Newcastle é diferente. Tem uma atmosfera diferente. A cidade vive o clube como religião. É bem claro para mim. Tive oportunidades de passar situações que realmente é um clube especial”.

SER O PRIMEIRO BRASILEIRO A JOGAR NO FUTEBOL INGLÊS

“Com toda sinceridade, deixando a vaidade de lado, a sensação é muito prazerosa de ter me tornado o primeiro brasileiro a jogar no futebol inglês, na Premier League, que na época era a Premiership. Acredito que qualquer um estaria muito feliz e realizado por ter conseguido esse feito. Tive a felicidade de ser o primeiro, de fazer vários gols em equipes tops do futebol inglês, que marcou profundamente na minha carreira. Ficará para todo sempre. Sempre que se fala em Brasil e Inglaterra em termos futebolísticos, meu nome é o primeiro a vir à tona, pelo fato de ter sido o primeiro a jogar na Premier League. Logicamente, muita gente ainda consegue colocar alguns pormenores na minha passagem, mas eu estou lá marcado em duas temporadas. Eu sou hoje o oitava ou nono maior artilheiro de brasileiros que jogam no futebol inglês, que já jogam há cinco, seis anos. Eu apenas fiz duas temporadas. Atingi essa marca importante que, se fosse hoje, não estaria nem jogando no Newcastle. Estaria jogando em um dos “gigantes”, porque para mim o Newcastle é gigante. Pelo poderio que tem de torcida, pela cidade, pela religiosidade que eles têm em relação ao Newcastle, porque os torcedores tem o clube como religião. Satisfação pessoal, fiz grandes amigos e tenho grandes lembranças”.

PRINCIPAIS LEMBRANÇAS NO CLUBE

Entre as principais lembranças, Mirandinha possui histórias dentro e fora dos gramados ingleses. E, duas delas, estão associadas ao natal britânico. A primeira é o gol marcado contra o Liverpool, no tradicional Boxing Day – tradicional rodada disputada no dia 26 de dezembro logo após a comemoração natalina. A outra foi o convite do Newcastle para Mirandinha apresentar o festival de natal da cidade.

“Lembranças foram inúmeras. A primeira delas foi o gol que eu fiz contra o Liverpool, de pênalti que nos deu a vitória no final do jogo, no Boxing Day. Tive a felicidade de cobrar o pênalti no final do jogo. Acredito que foi uma das únicas derrotas dentro daquela temporada. Eles contavam com grandes jogadores, como o Steve Bruce, jogadores do porte do John Barneys e tantos outros de altíssimo nível. Acredito que tenha sido um dos grandes momentos da minha carreira, da minha passagem pelo Newcastle. Na minha chegada, fui convidado para inaugurar o natal de Newcastle, onde uma personalidade é convidada para acender as luzes, no centro de Newcastle. Fui convidado em 1987, quando lá cheguei. Saí com os meus filhos da prefeitura com o Papai Noel. Fui até lá, fiz a minha parte e aí veio a grande recompensa: tive que me refugiar no topo do prédio do shopping, tamanho o assédio dos torcedores para pegarem um autógrafo comigo. Acredito que esse foi o momento mais relevante e de maior satisfação pessoal da minha carreira. Nem mesmo minha primeira convocação para a Seleção Brasileira me emocionou tanto. Outro que marcou muito e representa a vida da minha filha, que nasceu em Newcastle. Isso faz com que as lembranças sejam muito grandes. Como sempre digo, a humildade está acima de qualquer vaidade”.

Sobre o festival de natal de Newcastle, Mirandinha contou mais detalhes da experiência que teve. Para o ex-atacante, foi o momento de mais satisfação pessoal e profissional que teve.

“Esse foi o momento de maior satisfação pessoal e profissional que eu recebi de todos. Foi justamente para dar o início ao natal de Newcastle acendendo as luzes da cidade. Eu fui visto como um verdadeiro ídolo e, para qualquer ser humano, isso é muito agradável”.

Outra lembrança que Mirandinha trata com carinho e não se esquece até os dias atuais foi o contato com o jovem Lee Clark logo em sua chegada ao clube.

“Teve algo que tocou realmente meu coração na minha chegada. Era o Lee Clark. Um menino de 16 anos. O sistema dos clubes os garotos da base cuidavam do material dos profissionais. Ele cuidava da minha roupa, da minha chuteira. Por dois anos ele me ajudou, pois os clubes não tinham roupeiro. O Lee foi algo que marcou pela humildade, simplicidade. Depois, também se tornou um ídolo do Newcastle, hoje é treinador. Foi uma das lições mais bonitas que eu vi no futebol. A cada jogo estava no vestiário perguntando se a chuteira estava boa, se queria que trocasse as travas. Sempre com carinho, dedicação”.

COMPANHEIROS QUE MARCARAM

“Amigos de verdade eu tive muitos, mas alguns marcaram porque foram importantes na minha estadia no clube, no país. O primeiro foi o David McCreery. Ele me carregava para todos os lados com a sua família. Era como família, me ajudou muito na língua, nos costumes. Pelo calor humano e pela pessoa, foi muito importante. O Gazza pela parceria dentro do campo, que foi fantástica. Honra em ter jogado ao lado de um monstro sagrado, marcou pela simplicidade e humildade. Quando menos esperava, batia na minha porta querendo comer a comida brasileira. Tive uma outra amizade muito forte com o Lee Payne, que perdura até hoje. Inclusive, estamos fechando uma parceria para trabalhar juntos em Marbella, na Espanha, com um centro de formação de jovens. Ele, depois que saiu do Newcastle, foi jogar na Holanda e virou agente FIFA. Deu oportunidade ao meu filho mais velho Hernandes, que jogou no Utrecht, da Holanda, no Rennes, da França. Sempre o Lee o acompanhava. Virou um irmão para mim e um paizão para o Hernandes. Com isso, nosso laço de amizade ficou muito forte. Em 1998, ele veio ao Brasil e eu estava no interior de São Paulo. Daqui, o levei a Fortaleza, para conhecer a minha terra, conheceu uma cearense, casou com essa pessoa e tem uma filha”.

AMIZADE E PEGADINHAS COM GASCOIGNE

Um das amizades mais lembradas com carinho por Mirandinha foi a com Paul Gascoigne. O ex-atacante, que também foi um ídolo do Newcastle e disputou a Copa do Mundo de 1990 pela Inglaterra, foi um dos grandes companheiros do brasileiro, seja dentro ou fora dos gramados.

Mirandinha recordou as pegadinhas feitas pelo inglês. Entre elas, a vez que Gazza, como era conhecido, fez o elenco, a comissão técnica e a diretoria do Newcastle caírem na gargalhada com uma frase dita no ônibus da delegação.

“Com o Gazza, foram muitos momentos de pegadinha, dele aprontando comigo por virtude da língua, dos costumes. Mas foram coisas muito bacanas. Era para me descontrair e me deixar à vontade. A primeira foi justamente na minha estreia, contra o Norwich City, em Norwich. Era costume dos clubes pararem no trajeto e encomendar comida para depois do jogo. Geralmente vinha fish and chips, chicken and chips e refrigerante. Nós jogamos e empatamos em 0 a 0. Estava demorando a chegar no local que tinha sido encomendada a refeição. O Gazza veio para mim, no meu ouvido e falou: “Vai até o Mr. Willy e fala que está morrendo de fome”. Fui lá, para ser agradável, e falei. Quando falei, o restante do grupo ouviu, nosso diretor, a comissão técnica, todos caíram na gargalhada e fiquei certo do que falei sem saber o que falei. Apenas segui as instruções do Gazza. Essa foi só uma das primeiras. Muitas outras vieram pela frente. Quando minha filha nasceu, a Sara, ele, para ser agradável, falou que ia dar um cachorrinho para ela. Um belo dia, ele chega lá em casa com uma Cocker Spaniel Inglês e deu para a Sara. Colocou o nome dela de Gazza. Eu aceitei naquele momento, mas, com o passar do tempo, virou Belle. Foram coisas assim que marcaram, sem contar as passagens por pubs, churrascos. Coisas realmente engraçadas, gratificantes, que ficarão na minha memória para sempre”.

RELAÇÃO COM A TORCIDA DO NEWCASTLE

A relação com a torcida do clube era fantástica. Segundo Mirandinha, todo lugar que ia, era sempre bem recebido, ao ponto de ter que evitar determinados locais devido ao assédio. No entanto, o brasileiro revelou que sempre teve uma relação próxima à torcida. E a idolatria era tanta que o clube criou uma terceira camisa verde amarela em sua homenagem.

Além disso, como é comum no futebol inglês, os torcedores fizeram uma música especial para saudá-lo. A letra cita Maradona e a rivalidade entre Argentina e Inglaterra por conta da Guerra das Malvinas.

“A minha relação com a torcida do Newcastle foi fantástica. Primeiro por ser o primeiro brasileiro, eles queriam uma foto a todo custo, um autógrafo. Eu não conseguia ir praticamente a lugares públicos. Quando eu era reconhecido, era difícil conter o assédio dos torcedores. Mas, era muito próximo deles, sempre atendia com muito carinho. Sempre muito reverenciado por eles, por tudo que eu fazia dentro de campo. Óbvio, não conseguia agradar a todos, de vez em quando aparecia alguém com uma cobrança. Mas, foi muito bacana a minha relação com o torcedor. Tanto é que era sempre requisitado para abertura de lojas, shoppings. Ia visitar crianças com câncer, em hospitais. Estava sempre acompanhado com o Gazza. A gente andava muito juntos. O torcedor fazia a questão de usar a minha camisa, foi criado dentro do clube uma terceira camisa verde e amarela em homenagem a mim. Tudo gratificante, prazeroso. Os torcedores criaram uma musiquinha com o meu nome, e até hoje eles ficam me mandando a letra dessa musiquinha, em virtude, acredito, da rixa entre Argentina e Inglaterra, por conta das Malvinas. Essa música envolvia o Maradona, pelo gol de mão que ele fez contra a Inglaterra. “We’ve got Mirandinha, he is not from Argentina. He is from Brasil and fucking brill”. Eles cantavam direto no estádio, quando me encontravam faziam questão de cantar o refrão comigo. A convivência é fantástica, tenho inúmeros amigos ingleses”.

MELHORES ADVERSÁRIOS QUE JOGOU CONTRA

Assim como no futebol brasileiro, na Inglaterra as rivalidades também são levadas a sério. O Newcastle, por conta da proximidade entre as cidades, tem o Sunderland como rival. No entanto, Mirandinha não jogou nenhum Tyne Wear Derby. Mas, fez confrontos marcantes contra o Arsenal de Tonny Adams, o Manchester United de Bryan Robson e o Liverpool de John Barnes.

“Alguns jogadores era prazeroso jogar contra. Ao mesmo tempo que jogava contra, a gente via o nível e a qualidade. Um deles foi o Tonny Adams, que tive o prazer de jogar pelo Brasil contra a Inglaterra, partida que eu fiz o gol na vitória por 1 a 0. Era um grande zagueiro, muito leal. Tive a felicidade de jogar contra o meu ídolo no futebol inglês. Tive o prazer de dar duas canetas nele, que era o Bryan Robson, que jogava no Manchester United. Era muito prazeroso ver o Bryan jogar. Qualidade técnica fantástica, muita visão de jogo. O que volantes fazem hoje, ele já fazia naquela época. De chegar na área para fazer gols. Um dos mais completos que eu vi jogar. Atacantes como Gary Lineker, monstro sagrado. Tive oportunidade depois de jogar contra no Japão. Se colocava sempre onde a bola chegava. E o meu ídolo maior como atacante, que foi o John Barnes. O John tinha aquilo que tinha o Garrincha do outro lado. Jogador driblador, com potencial de chute muito grande, dribles desconcertantes. Um jogador que fez com que o futebol inglês brilhasse tanto durante os anos 70, 80”.

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