A morte de um juiz da Suprema Corte de Justiça é sempre algo importante nos Estados Unidos. Mas a de Ruth Bader Ginsburg é um terremoto com consequências imprevisíveis para o país.
Ginsburg, que morreu na sexta-feira (18/09) aos 87 anos em decorrência de um câncer de pâncreas, era um ícone feminista e progressista da mais alta corte dos Estados Unidos para questões como igualdade de gênero, imigração, aborto e casamento igualitário.
Sua morte agora abre a possibilidade de que o presidente Donald Trump indique seu sucessor em um tribunal de nove membros para o qual ele já escolheu dois, e assim alterar por anos o equilíbrio ideológico do Supremo em favor dos conservadores.
Trump já reiterou seu desejo de selecionar um novo juiz da Suprema Corte enquanto os republicanos têm poder sobre a presidência e o Senado dos EUA. No sábado (19), ele disse que espera anunciar sua nomeação “na semana que vem”, e que ela “provavelmente” será uma mulher.
Como isso também ocorre em um país politicamente polarizado e poucas semanas antes de uma eleição presidencial tensa, o debate sobre a substituição de Ginsburg ameaça aumentar a divisão entre republicanos e democratas.
“Normalmente, as nomeações para o Supremo Tribunal são um esporte sangrento. Portanto, isso vai ser verdadeiramente apocalíptico. Há muito em jogo nessa nomeação”, diz Jonathan Turley, professor de direito constitucional da George Washington University, à BBC Mundo, o serviço hispânico da BBC.
Uma cadeira-chave
O fato de os juízes da Suprema Corte servirem por toda a vida significa que qualquer mudança na composição tem efeitos duradouros.
Nomeada pelo presidente democrata Bill Clinton em 1993, Ginsburg fazia parte de um bloco de quatro juízes progressistas que costumavam precisar de um quinto “pêndulo” para obter a maioria.
Em votações recentes, esse quinto voto foi dado pelo juiz John Roberts para decisões sobre imigração, direitos de homossexuais e outras questões importantes da chamada “guerra cultural” nos EUA.
Os presidentes americanos têm o poder de escolher os membros do tribunal, que deve ser ratificado pelo Senado, e Trump costuma considerar uma conquista ter feito isso duas vezes em menos de quatro anos no cargo.
Se pudesse colocar um terceiro magistrado puramente conservador, a Corte teria seis juízes escolhidos por republicanos, enquanto o bloco liberal permaneceria em uma minoria de três.
Com o tempo, isso pode levar a mudanças significativas em vários ramos do direito.
“Esta é possivelmente a nomeação mais importante da história do tribunal moderno. Há uma série de doutrinas que atualmente variam de maiorias de cinco a quatro”, observa Turley.
Por exemplo, ele aponta que um novo juiz conservador no tribunal pode abrir o caminho para reverter parcial ou totalmente Roe versus Wade, o caso icônico em que o tribunal descriminalizou o aborto em 1973.
Provavelmente ciente de tudo isso, Ginsburg disse antes de morrer que seu “desejo mais fervoroso” era que evitassem substituí-la até que um novo presidente assumisse o cargo, segundo a rádio pública norte-americana NPR.
A questão agora é se Trump pode causar esse desequilíbrio em uma Suprema Corte que recentemente falhou mais de uma vez contra os interesses do presidente.
‘Sem demora’
A morte de Ginsburg oferece a Trump a oportunidade de estimular o eleitorado conservador e religioso a menos de 50 dias antes da eleição, quando as pesquisas o mostram atrás do candidato democrata Joe Biden.
De fato, durante semanas, Trump apontou para a eventualidade de nomear um terceiro juiz da Suprema Corte como motivo para sua reeleição.
E neste sábado (19/09) o presidente confirmou pelo Twitter que tentará fazê-lo nos meses que permanecer como presidente.
“Fomos colocados nesta posição de poder e importância para tomar decisões pelas pessoas que nos elegeram com tanto orgulho, sendo que uma das mais importantes é considerada a escolha dos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos. Temos essa obrigação, sem demora!”, escreveu Trump no Twitter em uma mensagem ao Partido Republicano.
E o debate que se abre com isso desviará um pouco a atenção da resposta de Trump à pandemia de coronavírus, quando os EUA estão prestes a atingir 200 mil mortes por covid-19, um número que nenhum outro país registrou.
O Senado, a chave
O Senado é controlado pelo Partido Republicano de Trump. Seu líder, Mitch McConnell, antecipou na mesma sexta-feira à noite que haverá, sim, uma votação sobre o juiz nomeado pelo presidente.
No entanto, ele evitou dizer quando isso aconteceria: antes ou depois das eleições de 3 de novembro.
Os republicanos têm 53 senadores (ante 47 democratas), mas pelo menos dois membros dessa maioria protestaram dias atrás sobre votar em um novo juiz em um momento tão próximo da eleição.
Isso sugere que a substituição de Ginsburg pode se tornar um novo teste de lealdade republicana a Trump, quando alguns senadores lutam para serem reeleitos.
Por outro lado, soma-se à polêmica o precedente de que McConnell bloqueou em 2016 a votação no Senado de um juiz nomeado para o tribunal pelo então presidente Barack Obama, alegando que se tratava de um ano eleitoral.
Sua explicação agora é que a votação pode prosseguir porque, ao contrário de quatro anos atrás, o presidente e a maioria do Senado pertencem ao mesmo partido.
Os democratas rapidamente exigiram que ele esperasse até depois da eleição.
“Os eleitores devem escolher o presidente e o presidente deve escolher o juiz a ser considerado pelo Senado”, disse Biden na sexta-feira.
Isso também pode mobilizar eleitores de esquerda, que ainda não têm certeza se votam a favor de Biden.
“Eu não poderia imaginar tornar essa eleição mais divisiva ainda, mas aconteceu: isso adiciona um elemento transformador à eleição”, pondera Turley. “Isso aumentará o nível de raiva no país.”