A pandemia do novo coronavírus e as medidas de distanciamento social trouxeram à tona casos de violência doméstica. As mulheres, especialmente as mais pobres, têm sido as mais afetadas em todo país, mostram pesquisas publicadas pelo G1, por meio do projeto Monitor da Violência.
No Distrito Federal, houve um aumento de 13% no número de flagrantes relacionados à Lei Maria da Penha, segundo a Polícia Civil. Por outro lado, as denúncias caíram durante o período de isolamento. Entre janeiro e julho deste ano, foram 9.702 registros, contra 9.910 no primeiro semestre de 2019.
À frente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a juíza do DF Renata Gil de Alcântara Videira – primeira mulher a presidir a AMB em 70 anos – se tornou pioneira ao liderar a campanha nacional “Sinal Vermelho”. Em junho, em um dos picos da pandemia, a iniciativa tornou as farmácias pontos de denúncia e de ajuda às mulheres violentadas.
“Recebemos relatos de mulheres mantidas há 10 anos em cárcere privado que viram a campanha [Sinal Vermelho] na TV e foram até a delegacia”, conta a juíza.
Renata diz que ficou impressionada com o alto número de processos de violência contra a mulher. “É o quarto maior volume na Justiça brasileira, segundo o CNJ [Conselho Nacional de Justiça]”, explica.
Por outro lado, diz ela, “quando veio a pandemia, vimos aumento do número de feminicídios e o decréscimo dos registros dessas ocorrências”. Para a magistrada, o problema está na subnotificação dos casos.
“Os dados indicam que mulheres estão morrendo sem conseguir fazer denúncias”, diz a presidente da AMB.
No Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher, celebrado no sábado (10), o G1 conversou com a juíza Renata Gil de Alcântara Videira sobre os “efeitos colaterais” do isolamento na vida de mulheres e sobre meios de ajuda às vítimas.
“Embora a violência aconteça em todas as classes sociais, as de baixa renda têm maior dificuldade em denunciar e enxergar que são vitimas de violência, que o que sofrem em casa é crime.”
Veja pontos da entrevista com a juíza Renata Gil:
G1 – Como a campanha Sinal Vermelho se propõe a ajudar, de forma prática, as mulheres vítimas de violência?
Juíza Renata Gil – Hoje, mais de 11 mil farmácias aderiram à campanha em todo país.
“A ideia é de que as mulheres vítimas sinalizem a violência marcando um ‘X’ na mão, o que pode ser feito com um batom ou uma tinta vermelha. Dessa forma ela consegue pedir ajuda discretamente em locais como farmácia e drogarias.”
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Durante esse período, recebemos relatos de mulheres mantidas há 10 anos em cárcere privado, que viram a campanha [Sinal Vermelho] na TV e foram até a delegacia, escreveram o pedido de ajuda em papel.
Tem também o caso de uma deficiente auditiva e muda que fez o ‘x’ na mão, fotografou no celular e encaminhou a foto para a farmácia próxima de casa, que acionou a polícia.
“A campanha tenta também chamar a atenção para o problema de o Brasil ser o quinto país mais violento do mundo em crimes contra as mulheres.”
Estamos atrás apenas da Rússia, Honduras, Guatemala e Venezuela. Isso, enquanto temos a terceira melhor lei do mundo. Há um descompasso: temos a Lei Maria da Penha, um sistema de jurídico potente, varas funcionando, mas atentados contra mulheres crescendo.
G1 – E como surgiu a iniciativa de lançar uma campanha? Os dados que mostram a queda no número de denúncias de violência influenciou na decisão?
Renata Gil – Os dados indicam que mulheres estão morrendo sem conseguir fazer denúncias. As Defensorias Públicas estavam fechadas [no início da pandemia], as delegacias com atendimento reduzido e, por isso, pensamos imediatamente em lançar a campanha nos estabelecimentos abertos 24 horas, de fácil acesso e cuidadosos no atendimento.
Farmácias têm em todo lugar do Brasil. Pegamos apoio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), houve um engajamento imediato e acionamos todo sistema de segurança do país para alertar sobre os protocolos e que o atendimento da campanha é prioritário.
G1 – Já dá para notar os efeitos de mais essa facilidade para a denúncia ou o desconhecimento sobre o que é violência ainda é um fator que pesa?
Embora a violência aconteça em todas as classes sociais, as mulheres de baixa renda têm maior dificuldade em denunciar, de entender que são vitimas de violência. Algumas não sabem que o que sofrem em casa é crime.
“A Lei Maria da Penha determina que é crime cometer a violência moral, econômica e sexual – de estupro mesmo dentro das relações.”
Mesmo hoje, ainda há muita dificuldade em realizar as denúncias. Algumas mulheres não sabem e não têm aceso fácil aos canais de apoio. Precisa-se que as campanhas façam entender que não só as DEAM’s [Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher] fazem esse atendimento. Também acontece, que nas demais delegacias, ainda há um pensamento patriarcal.
“É importante que as delegacias distritais se fortaleçam nesse tipo de atendimento, e que mulheres fiquem encorajadas a buscarem seus direitos.”
G1 – A senhora, enquanto primeira presidente mulher da Associação dos Magistrados Brasileiros, de que forma pensa a atuação do Judiciário no combate à essas formas de violência?
Renata Gil – Eu sou juíza criminal e assumi a AMB com a expectativa de atuar no combate à violência contra a mulher e de fortalecer a participação feminina no Judiciário.
A violência contra a mulher sempre foi tratada como violação de direitos humanos, mas sem que governos tratem como estratégia de Segurança Pública. Se os índices [de agressão] incrementam esses dados, é preciso tratar [a violência] com policiamento, projetos comunitários, patrulhas Maria da Penha.
G1 – Sua gestão na AMB vai até 2022. Quais serão os próximos passos e mecanismos adotados pelo Judiciário para enfrentar essa “pandemia”?
Renata Gil – O objetivo é agora trabalhar na estratégia nacional de combate à violência, para que o governo tenha metas, números e ações.
É preciso uma estratégia para o treinamento nacional de policiais. Com isso, cria-se um mesmo padrão de atendimento, de contabilização de dados que, hoje, não são aferidos com o mesmo padrão.
Na Câmara Legislativa do DF (CLDF) também há um projeto de lei previsto com o nome da campanha [Sinal Vermelho] que, em breve, deve se tornar uma lei federal. Há esforços nesse sentido.
“Estamos em fase de monitoramento e de ampliação do atendimento para pessoas com necessidades especiais. Um público invisível que sofre muito com a violência. Queremos facilitar ainda mais o acesso a essas pessoas.”
G1 – No Judiciário, uma das maiores atuações é em relação às medidas protetivas. No entanto, vemos casos de mulheres que morrem com esse papel no bolso. De que forma, esse direito pode ser usado de modo mais eficaz?
Renata Gil – No Brasil, têm projetos que funcionam bem. Alguns deles que monitoram quem se envolve com violência doméstica. Vitima e agressor são monitorados de perto com visitas recorrentes e encaminhamentos a setores de atendimento psicossocial. Assim, vê-se a reincidência em menos de 1%.
“O monitoramento por meio da patrulha Maria da Penha, a educação desse agressor e a frequência em projetos de reinserção no âmbito familiar, afastando-o da concepção patriarcal seriam medidas eficientes que evitariam o descumprimento de medidas protetivas.”
G1 – A senhora pode detalhar os tipos mais comuns de violência contra a mulher?
Tem a violência patrimonial, quando a mulher é suprimida de ter acesso ao seu salário, quando o agressor não a deixa ter bens materiais. Em casa, até para se alimentar tem dificuldades, o homem, muitas vezes, não a deixa comer.
Violência moral: por xingamentos, atos que denigrem a imagem da mulher perante a família e amigos, característica do pensamento patriarcal.
Violência sexual: por atos libidinosas, estupros dentro da relação. Quando a mulher é obrigada a praticar o ato sexual na hora e do jeito que o homem quer.
Violência física: no geral, as mulheres a conhecem, mas só vão denunciar com as lesões já apagadas. O crime de lesão corporal exige prova pericial.
Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher
A data relembra o ato ocorrido no dia 10 de outubro de 1980, quando manifestantes se reuniram nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo em protesto contra o então crescente índice de crimes contra mulheres em todo o país.
Passados 40 anos, dados mostram que o feminicídio e a violência doméstica desafiam medidas de Segurança Pública.