A voz é calma, doce e firme durante praticamente toda a entrevista. Só treme, engasga e revela o choro quando diz o que pretende fazer no dia em que Nicette Bruno, sua mãe, completaria 88 anos (o aniversário da estrela, que partiu há três semanas vítima da Covid-19, foi na última quinta-feira). “Tá difícil falar. Tá muito recente. A gente ainda não pensou em nenhuma homenagem específica. Certamente, vamos orar muito pra ela e ter flores em casa. Mamãe gosta muito de flores. Isso me trará sempre a sua presença”, emociona-se Beth Goulart durante este bate-papo por telefone na última segunda-feira. Espírita, a artista se refere a Nicette sempre no presente, considerando-a viva, ainda que em outro plano. A dificuldade de segurar as lágrimas se acentua ao contar que a mãe refez o jardim de casa durante a pandemia e por isso o cenário foi escolhido para as fotos desta reportagem. “Eu sei que muito da energia dela está lá”, afirma a atriz, que está no elenco de “Gênesis”, novela da Record, que estreia dia 19.
Prestes a completar 60 anos, em 21 de janeiro (sim, não parece!), Beth se tornou uma referência de fé ao demonstrar tamanha serenidade durante o processo de adoecimento, internação, morte da mãe e agora luto. Com a intenção de ajudar pessoas que estão passando por situações semelhantes (“São muitas famílias no Brasil”), ela resolveu compartilhar seus sentimentos nas redes sociais, onde tem postado vídeos em que fala sobre a filosofia de sua família, composta ainda pelos irmãos, Bárbara Bruno e Paulo Goulart Filho. É bonito demais ouvi-la! Com vocês, as convicções da filha de Nicette. Herdeira não só de sua veia artística, mas de sua religiosidade, positividade, generosidade, alegria…
Suas postagens nas redes sociais parecem um compromisso seu com você mesma para ajudar pessoas que estão sofrendo por causa da Covid-19. É por aí?
É isso mesmo. Quero levar para as pessoas um pouco da nossa filosofia de vida. Muitos passaram a se espelhar na nossa família, por sermos uma família extremamente amorosa. Então os fãs criam uma relação de afeto. Nós aprendemos com os nossos pais a ter um respeito muito grande pelo público. Eu quis servir à sociedade. Nós vivenciamos nesse processo da mamãe uma coisa que está sendo experimentada por milhares de brasileiros. A partir do momento que você divide o que está passando, acaba ajudando os outros. É como se a gente pudesse trocar um pouquinho. Compartilhei todos esses sentimentos: a ansiedade, a preocupação, a fé, a esperança, o sofrimento, a dor.
Você nasceu em berço espírita… Essa crença ajuda muito num momento como este?
Sim, isso vem da minha bisavó, que era membro da Federação Espírita. Tive essa formação. Nós encaramos a morte como um novo nascimento. Se você pensar que a sua realidade fundamental é o espírito e a eternidade, entende que estamos aqui num fragmento, num momento, numa passagem. A vida é um processo de aprendizado. Na encarnação, você vai testar se aquilo que aprendeu realmente foi absorvido. Caso contrário, tem que “repetir o ano”. Preciso voltar pra aprender novamente “aquela matéria”. É um pouco assim, guardando as devidas proporções. Por isso que a gente usa essa imagem da escolaridade.
Acredita que ser feliz é uma escolha?
Acho que o processo de escolha na vida se dá em todos os momentos do cotidiano. As pessoas pensam que o livre-arbítrio é só assim: vou escolher ser artista, vou ser político, ou professor. Essas escolhas geralmente acontecem lá, antes de a gente encarnar. Mas, depois que já estamos aqui, podemos escolher como passar pelas situações. E é aí que optamos por ser uma pessoa positiva ou não. É aquela história do copo. Tem gente que vê o copo meio cheio, mas há os que só o veem meio vazio…
E Nicette via o copo meio cheio sempre, né?
Sempre. Todos nós. Porque agradecemos a metade do copo cheio e sabemos que temos que conquistar a outra metade. Quando você tem essa postura positiva diante da vida, isso o fortalece em todos os sentidos. E aí você caminha para frente.
Você teve essa experiência com seu pai (Paulo Goulart, vítima de câncer) seis anos antes. Na época, sua mãe estava aqui ao seu lado. Mas agora não havia um colo paterno ou materno. Sente uma diferença grande entre essas duas situações de perda? Perda entre aspas, né?
É isso aí! Entre aspas, porque não perdemos o que é eterno. E , sim, sinto uma diferença. Agora a gente tem que introjetar a mamãe e o papai dentro de nós. Para que possamos sentir essa proteção. Quando viramos órfãos, perdemos as referências. Você tem que aprender a se conectar com a vida por si mesmo. Nós tivemos um privilégio imenso de sermos filhos de pais tão amorosos, sábios, gentis e bons. Recebemos uma bagagem emocional e ética que nos dá um respaldo interno para seguirmos. É fácil? Não é. Tem saudade? Tem. Às vezes, falo: Ô, mãe, cadê você pra eu te abraçar? Cadê seu colo pra eu deitar? Agora, quando eu deito no meu travesseiro, tenho uma nova forma de me comunicar com ela. Continuo falando com minha mãe, não de forma física.
A impossibilidade de visitá-la no hospital na pandemia também deve ter deixado tudo mais angustiante do que na época de seu pai…
Com certeza. Com papai, nós vivemos a despedida lindamente. Ele partiu com todos nós ao lado dele orando. Foi um momento de grande união para nós. Agora, com a mamãe, foi muito triste. Nós até conseguimos entrar no CTI, todos paramentados. O médico nos deu essa oportunidade com ela ainda em vida (mas inconsciente). Depois, quando mamãe tinha acabado de falecer, entramos uma segunda vez para fazer a nossa oração.
Em seus posts, você fala diretamente com ela, né? Você escreve: “Mãe, eu te amo”… Como se estivesse mandando um recado mesmo. Acredita que ela recebe?
Tenho certeza. Pelo fato de termos uma família espírita, sabemos que existe este canal de comunicação. Então, da mesma forma que você ora para Deus, você pode mandar “recados” para uma pessoa amada. É claro que a gente não fica assim: “Ah, me ajuda, faz isso pra mim…” Não é essa a função. Aprendi isso com a minha mãe. Ela sempre orou muito, lia o evangelho pra nós… Era eu que a acompanhava, por exemplo, quando ela tinha encontros com (o médium) Chico Xavier. Tive o privilégio de conhecê-lo. Isso tudo me marcou, fortaleceu muito em mim a fé.
A família tem alguma ligação com um centro espírita específico?
Tivemos esses ensinamentos em casa. Mamãe teve toda uma formação ligada a Curitiba, na Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas. E teve um centro espírita em São Paulo, foi presidente de uma casa lá. Inicialmente, frequentávamos essas instituições. Depois, fazíamos nossos estudos e orações em família. O templo de Deus somos nós mesmos.
Mas você costuma orar em algum lugar especial em sua casa?
Tenho um espaço onde ponho uma imagem de Jesus, uma Nossa Senhora… Mamãe, quando estava encarnada, rezava para um santo diferente para cada filho (risos). O da Bárbara é São Judas Tadeu, a minha é Nossa Senhora, e o do meu irmão é o Menino Jesus de Praga. Mamãe era devota de Nossa Senhora Aparecida. Quando tinha medo de alguma coisa, falava logo: “Ai, minha Nossa Senhora Aparecida”. No avião, quando balançava…
Ela tinha muito medo de avião mesmo?
Tinha, tadinha. Viajava à beça. Aprendeu a domar o medo, mas Nossa Senhora Aparecida teve muito trabalho (risos).
Sua neta, Maria Luiza (filha de João Gabriel, fruto do casamento da atriz com o músico e compositor Nando Carneiro), foi batizada. Vocês fizeram missa de sétimo dia para sua mãe. Sua religiosidade não se resume somente ao espiritismo então, certo?
Nós acabamos tendo de certa forma alguma formação católica. Fomos crismados, fizemos primeira comunhão… O trabalho espírita é em cima dos ensinamentos de Jesus. Então somos cristãos. A missa para mamãe foi feita também pensando nos fãs.
Percebeu algum aumento de seguidores em suas redes depois que começou a fazer as correntes de oração para Nicette às 18h?
Teve sim. Principalmente na época em que ela adoeceu. As pessoas estavam muito preocupadas. E um dos objetivos dos meus vídeos era dar notícias. Para os amigos mais chegados, a gente conseguia passar um WhatsApp, mas para os fãs… Aí eu quis fazer esse movimento das orações. Foi um impulso que eu tive. Uma vontade de que as pessoas pudessem orar pra que ela melhorasse. Na verdade, pra que acontecesse o que fosse melhor. Porque às vezes a gente é um pouco egoísta, fica achando que o melhor é a pessoa ficar, ficar, ficar… Mas nem sempre é.
Você já declarou que, quando estava adaptando o espetáculo “Perdas e ganhos” (em que Nicette fez um monólogo sobre a morte de um grande amor), teve o pressentimento de que a peça não sairia antes da partida de seu pai. No caso da sua mãe, teve alguma intuição assim?
Olha, durante essas orações pra mamãe, no início, eu falava: “Que Deus permita que a senhora tenha saúde, que possa retornar pra nós”. Mas, em algum momento, eu comecei a sentir que era uma escolha dela. Então, comecei a dizer: “Estamos abertos pro que a senhora quiser. Se
preferir voltar, estamos aqui de braços abertos para ajudá-la em tudo, mas, se optar por seguir o caminho espiritual, vamos entender e aceitar”.
Teve receio de que ela escolhesse ficar para não fazer vocês sofrerem?
Sim, porque às vezes a pessoa pensa: eu tenho que voltar porque eles ainda precisam de mim… Ninguém está preparado para se despedir da mãe, né? A dor é que nem a de um parto. Um parto ao contrário. Não tem parto sem dor. A dor existe. Faz parte. A gente vai viver isso durante pelo menos o primeiro ano de luto. Mas vamos nos alimentar sempre com lembranças positivas.
Como foram os últimos dias dela em casa? Estava numa quarentena bem rígida, não foi?
Sim, mas não estava sozinha. Tinha alguns empregados que moravam com ela. E eu ia todo dia vê-la. De máscara, ficava longe, sempre tomando cuidado… Enfim, quando menos se espera…
Você contou que ela foi infectada na visita de um parente. Muitas famílias se voltariam contra a pessoa que a contagiou…
Ninguém fez isso por querer. A gente sabe que cada vez mais temos que ter consciência de evitar determinadas coisas que possam levar ao contágio. Talvez essa pessoa não tenha tido o devido cuidado. Mas não dá para julgar o outro. Tem um poder superior, que sabe o porquê de tudo. E nós temos que ter uma certa compaixão também por essa pessoa. Não deve estar sendo fácil pra ela. Então é alguém que precisa da nossa oração.
Como você passou o primeiro Natal e o primeiro réveillon sem sua mãe?
Sozinha. Fiquei em casa. Não pude ver nem meu filho. É um momento de isolamento. Ficou cada um na sua casa orando. Foi um momento de reflexão sobre força do amor, da fé. Também fiquei pensando em como a humanidade está perdida de si mesma. Não é à toa que estamos passando por uma pandemia mundial. Muitos valores precisam ser revistos. Você vai pensar só em você ou no próximo? Vai pensar que quer ir à festa ou nos seus pais quando voltar para casa?
Enquanto espírita, como vê a pandemia?
Acho que a gente está passando por um processo de depuração da humanidade. Até astrologicamente, a tal era de Aquário está começando agora, é o início da era da luz. Mas, pra que isso se concretize, um pente fino precisa ser passado. Quem vai ficar tem que ter uma nova consciência. Infelizmente, ainda veremos muitas pessoas partindo do nosso planeta, pela inconsequência.
No dia 19, “Gênesis” estreia na Record. Como é sua personagem, a rainha Jaluzi?
Interessantíssima! Uma vilã diferente, porque ela é espetaculosa. E também vira vítima. Você ri com ela, se compadece dela… A novela é dividida em fases. Começa com Adão e Eva e depois conta a saga da família de Abraão. Eu faço uma participação grande na parte de Sodoma. Meu irmão está na fase anterior. Não contracenamos.
A trama é bíblica e vai ao ar numa emissora evangélica. Em algum dos seus trabalhos na Record, você já se pegou numa situação de conflito de crenças?
Nunca. E se fizesse uma personagem judia em outra emissora? Não sou, mas respeitaria profundamente aquela fé. É um trabalho artístico. Sem falar que aprendi muito mais sobre a Bíblia atuando lá. Toda religião tem uma sabedoria sagrada.
Fora a novela, mais algum plano profissional?
Eu estava escrevendo um livro junto com mamãe com o conteúdo das palestras motivacionais que fazíamos. Estávamos no final. Chama-se “Viver com arte”. Ele começa falando da morte do papai. Agora o desfecho será a partida dela. Mais um trabalho que eu acho que a espiritualidade colocou no nosso caminho pra poder auxiliar as pessoas. Até a passagem dela foi missionária.
Uma coisa semelhante com o que aconteceu em “Perdas e ganhos” então…
Penso em refazer a peça. Agora comigo no papel que foi da mamãe. Ainda não sei o formato. Vou deixar minha intuição falar.
E a biografia escrita por Cacau Hygino sobre Nicette? Estava prevista para 2020, como homenagem aos 75 anos de carreira dela. Ficou para 2021?
Sim, ele finalizou as entrevistas. Vai ser lançado este ano. O meu livro é diferente. Não é uma biografia.
Na última entrevista de sua mãe, concedida para o blog da jornalista Anna Ramalho em setembro, após demonstrar insatisfação com as aglomerações, Nicette se despediu afirmando: “Mas vai vir coisa boa”.
Tenho certeza de que ela está bem! A alegria é sua principal característica e vai continuar sendo.