“Pedi a Deus um menino e uma menina e ele me deu, só que da forma dele.” A frase foi atribuída ao pai de duas pessoas transgênero, motorista de transporte via aplicativo. O passageiro postou sobre a conversa em uma rede social e o relato viralizou. Muita gente, porém, duvidou da veracidade do diálogo, como se fosse uma situação impossível.
Essa poderia ser a história de Bárbara, 37 anos, e Thiago Aires, 25, irmãos e transgêneros, nascidos em São Paulo. A família deles, porém, não os acolheu assim durante a transição. Como ocorre com grande parte das pessoas trans, os pais tiveram dificuldade em compreender as questões que envolvem a identidade de gênero.
“Não sei o que fiz para vocês virem trocados, mas já que são assim eu respeito”, a mãe deles costumava dizer. Já o pai, um militar hoje aposentado, com 90 anos, acredita que eles vão ter que “se acertar com Deus”. Diante desse cenário, Bárbara e Thiago se apoiam um no outro e na militância para conquistar direitos.
“Tem irmão gêmeo gay, irmã gêmea lésbica, como a Pepê e Neném. Não entendi por que não acreditaram [na história que viralizou]. Por que não poderia ter dois irmãos trans e o pai poderia, inclusive, agradecer a Deus pelos filhos?”, questiona Bárbara.
Ela afirma que a sociedade é muito genitalista. “Precisam entender as pessoas como seres humanos, desapegar do genital, para não ter essa surpresa de um pai aceitar dois filhos trans”, diz.
O Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+, de acordo com dados da ONG Transgender Europe. Levantamento do Grupo Gay da Bahia informou que 329 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais tiveram morte violenta no Brasil, vítimas da homotransfobia, em 2019. Foram 297 homicídios e 32 suicídios. Isso equivale a uma morte a cada 26 horas.
Bárbara relata que as pessoas trans são as mais expulsas de casa e também têm muitas dificuldades no mercado de trabalho. Ela aponta que o país é o maior consumidor de pornografia transexual. “É uma grande hipocrisia que rege a sociedade. A gente precisa muito do amor da nossa família para que não seja mais uma estatística.”
Transição
Bárbara veio ao mundo em um corpo biologicamente masculino. “Sempre demonstrei feminilidade desde nova. Até uma certa idade era ok. Quando fiquei maior, comecei a ter problemas porque não performava a masculinidade”, relata.
Aos 5 anos, Bárbara fugiu de casa pela primeira vez por sofrer agressões físicas. “Apanhava muito do meu pai, levava muita bronca. Ele é do tempo que a PM não exigia qualquer formação, aprendeu a ler no Exército e dizia que escola não fazia falta”, lembra.
Os anos seguintes foram marcados por surras e fugas. Até que um dia, quando a polícia a levava de volta para casa, o pai se recusou a recebê-la e Bárbara passou a viver em um abrigo.
“Com 10 anos conheci o meio gay em SP. Fui entender o que se passava comigo. Sempre me vi menina, gostava de boneca, roupa, costura, o universo clichê do feminino. Eu perguntava para a minha mãe: quando meu “negócio” vai ficar igual ao seu? Eu estranhava nosso corpo ser diferente”, relata Bárbara.
Primeiro, Bárbara acreditava ser um “menino que gostava de meninos”. A convivência com travestis e mulheres transgênero mostrou a ela que existiam outras formas de ser. “Tive esse primeiro start de que eu poderia ser a mulher que eu sabia que eu era. A gente está falando dos anos 1990. O dia a dia era muito cruel. Elas levavam ovadas, sofriam violência e isso me deixou amedrontada.”
Em 1995, Thiago nasceu. Pouco tempo depois, a mãe deles já não vivia com o pai e Bárbara preocupava-se com o menino (que nasceu em corpo biologicamente feminino e todos tratavam como uma garota, até então), que ficou aos cuidados do militar.
Com 18 anos, Bárbara decidiu fazer a transição com auxílio de hormônios. Tempos depois, a mãe passou a viver com ela e as duas juntas criavam Thiago. “Acabei reproduzindo transfobia com o Thiago, que só queria brincar de carrinho, usar calça e camisa. E eu na minha reprodução da sociedade dizia: você não pode, você é menina”, lembra Bárbara.
Bárbara mudou-se para o Rio de Janeiro, onde vive atualmente, em 2006, para procurar trabalho. Ela tentou ser vendedora, balconista e desempenhar outras funções, mas encontrou muito preconceito no caminho. “Entrei para o mercado do sexo por falta de outras perspectivas”, afirma. No Rio, Bárbara se tornou militante, produtora de programas de televisão e consultora em questões relacionadas a gênero.
Ela, que nunca deixou de conviver com a família em SP, conta ter evitado conversas mais profundas com o irmão sobre identidade de gênero até que ele completasse 18 anos, pois temia ser acusada de influenciá-lo.
“Eu sou igual a você”
Desde os 13 anos, porém, Thiago já se apresentava com esse nome e pedia para ser tratado no masculino. “Muito pequeno eu já cortava meu cabelo, dizia que era um menino. Não passei pelos mesmos problemas que a Bárbara, acho que para ela foi muito mais difícil em casa e fora também. Um dia eu disse para ela: eu sou igual a você, como faço para esse povo me respeitar?”, relata Thiago.
Foi Bárbara quem o acompanhou ao médico quando ele, após completar 18 anos, decidiu tomar hormônios. Também foi a irmã quem o aconselhou sobre relacionamentos amorosos e de que maneira deveria se apresentar como homem trans na sociedade.
“A Bárbara sempre cuidou de mim. Ver a luta dela, vê-la crescendo foi o que me deu forças para firmar a minha transição. Ela me apresentou à causa trans, conheci pessoas do meio LGBT. Se não fosse ela, eu não teria iniciado a transição no tempo que iniciei”, afirma Thiago.
Bárbara, que já participava de movimentos políticos pela causa LGBTQIA+ (mesmo antes do T fazer parte da sigla que está em constante mudança), instruiu o irmão sobre direitos, legislação e uso do nome social na escola.
“Transicionar sem o apoio de ninguém é muito mais duro. Minha irmã foi um espelho pra mim”
“O colégio foi um ambiente muito difícil. Eu me recusava a responder a chamada porque os professores insistiam em usar o meu nome de registro. O uso do banheiro também foi um conflito. Sofri muito bullying, era chamado de “Maria macho” e recebia muitas ameaças”, relata Thiago.
Ele usava um pedaço de pneu como faixa para esconder os seios e chegou a se perguntar se era uma mulher lésbica, mas aos poucos entendeu as diferenças entre orientação sexual (com quem você tem desejo de se relacionar) e identidade de gênero (quem você é).
Em 7 de novembro de 2019, Thiago fez a cirurgia para retirada dos seios e posteriormente retificou seus documentos. “Achava que meu pai ia agir como fez com a Bárbara, mas ele disse que era um problema meu, que eu ia ter que me acertar com Deus”, lembra. Bárbara atribui a diferença de tratamento ao machismo. “Meu pai nunca me chamou pelo nome, já disse que, para ele, eu morri”, conta.
Atualmente, Thiago vive em São Paulo, trabalha como social media e namora uma mulher cisgênero (que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu), com quem planeja ter uma família. Bárbara mora no Rio de Janeiro, apresenta-se como mulher trans, ativista travesti e consultora de gênero. Ela também abriu uma agência de publicidade, como sócia, e espera ver o negócio decolar em 2021.
“A minha dificuldade de encontrar emprego foi o que me levou para a militância. Ter um irmão trans é um motivo a mais, mas a luta nunca foi só por mim. Ele poder usufruir de leis, de decretos, é um pagamento pela luta que eu e outras tivemos”, afirma.