Emitida em 10 de julho de 2017, uma carta do Vaticano dizia ao pedagogo e ativista pelos direitos LGBT Toni Reis que “o papa Francisco lhe deseja felicidades, invocando para a sua família a abundância das graças divinas, a fim de viverem constante e fielmente a condição de cristãos, como bons filhos de Deus e da Igreja, ao enviar-lhes uma propiciadora Benção Apostólica, pedindo que não se esqueçam de rezar por ele”.
A família de Reis, hoje com 56 anos, é formada pelos filhos Alyson, Jéssica e Filipe, e o marido, o tradutor britânico David Harrad, de 63 anos.
Na última semana, a Congregação para a Doutrina da Fé, tradicional órgão da Santa Sé, divulgou um comunicado reiterando que o catolicismo não abençoa uniões homoafetivas. O documento diz que “a Igreja não dispõe, nem pode dispor, do poder de abençoar uniões de pessoas do mesmo sexo”.
Da alegria de se sentir incluído quatro anos atrás à frustração experimentada agora, Reis diz que não está decepcionado com o papa Francisco, que em sua avaliação tem promovido avanços na inclusão dos homossexuais dentro da Igreja.
“O papa é falível, o papa é um ser humano. Ele tem coração. O sangue do papa é vermelho, ele sofre pressão, eu sei como funciona a Igreja. É como um partido político, enfrenta forças e há um grupo conservador muito forte”, diz ele à BBC News Brasil.
“São ondas. Ele vai e volta, vai e volta. Há um setor muito rígido [na Igreja], de extrema-direita e extremo conservadorismo. Ele [papa Francisco] também é político.”
“Ele não me decepciona porque é muito querido, eu gosto do papa, não o considero [alguém contrário aos homossexuais], mas ele faz parte de uma estrutura que é falível. Assim como a Igreja já errou muito na Idade Média, já errou com relação ao Galileu Galilei [cientista condenado à prisão pela Inquisição por defender o heliocentrismo], já errou com relação a muitas mulheres que foram queimadas na fogueira”, prossegue.
“A Igreja é feita por seres humanos. Eu acredito em Deus, e por isso não me decepciono. Quanto ao papa, ele vai lá e faz. Cede um pouco. São dois passos para a frente, um passo para trás. É tudo uma questão de tempo.”
O catolicismo
Antonio Luiz Martins Reis nasceu em Coronel Vivida, no Paraná, em 1964. O catolicismo veio por tradição familiar. “Minha mãe era extremamente católica. Íamos à missa todos os domingos às 9h da manhã”, recorda-se ele.
“Eu gostava daquele ritual. Sou um católico cultural.”
Aos 12 anos de idade, já morando no município de Quedas do Iguaçu, também no Paraná, resolveu participar de um encontro preparatório conduzido por religiosos maristas — queria se tornar um deles.
“Lembro-me que falei ao diretor espiritual: eu quero ser irmão [religioso], mas preciso dizer que não tenho atração por mulheres, só tenho atração por meninos, por homens. Então ele falou: não pode. Você precisa conversar com seu padre [de sua paróquia]”, relata.
Ele foi então se confessar com o padre.
“Ele disse que eu não podia seguir carreira religiosa porque eu estava doente e vivia em estado de pecado”, conta Reis. “Perguntei se não dava para ser só pecador ou só doente. Ele falou que não, que eu era os dois. E me mandou fazer uma novena para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, toda quarta-feira.”
Na época, o garoto trabalhava como auxiliar em uma loja da cidade.
“Saí correndo do meu trabalho para dar tempo de ir lá na igreja para rezar. E o padre sempre me perguntava como estavam os meus desejos pecaminosos e doentios, se estavam diminuindo. E eu respondia que não, que estavam cada vez maiores”, afirma.
“Passava uma novela que tinha o [ator] Tony Ramos e eu o achava um tesão. E também o [cantor] Sidney Magal, quando ele cantava, aquilo me deixava louco e eu tinha os tais pensamentos pecaminosos e doentios. Falava para o padre e ele me mandava continuar [a novena], começar tudo de novo.”
“Minha novena foi uma quarentena. E não, não deu certo”, narra Reis. “Ele [o padre] pediu para eu me afastar da Igreja, me afastar da Igreja Católica, não mais comungar, não mais ir a missa.”
Foi uma adolescência bastante conturbada. “Sofri muito desde esse episódio com o padre até meus 20 anos. Foi muito difícil. Padre no interior é autoridade máxima, assim como prefeito e delegado”, comenta. “Minha família também achava que eu era pecador e doente, falavam que eu era inteligente, não podia ser daquele jeito.”
No período, recusou a toda a sorte de “tratamentos”. Um pastor evangélico tentou convertê-lo. Uma vizinha adventista promoveu corrente de orações. Reis também buscou ajuda em um centro de umbanda.
“Tentaram de tudo. Fiz promessas, tomei leite colostro de égua, que dizem que é bom, tomei xaropada de amendoim. Me levaram para a zona, que é como no interior se chama a casa de mulheres trabalhadoras do sexo. Mas eu ia lá e começava a conversar com elas, não fazia nada porque não é minha praia”, enumera. “Sofri muito.”
Ele conta que foi um médico no município paranaense de Pato Branco, onde foi levado pela família, que deu o laudo em forma de conselho: ele não tinha nada de errado, mas seria bom se mudar para um grande centro e estudar, “para sofrer menos”.
Aos 18, transferiu-se para Curitiba. Ingressou no curso de Letras da Universidade Federal do Paraná. No pensionato onde morava, dividiu quarto com um jovem seminarista. “Ele me mostrou o outro lado da Igreja Católica, mostrou que havia várias tendências. E me apresentou para um padre que me resgatou [para o catolicismo]”, relata.
“Eu voltei a frequentar igreja. Mas, para mim, o padre, o bispo e o papa são apenas os seres humanos que fazem as leis. E essas proibições que não pode ser gay… Olha… Para mim, pecado é odiar, é maltratar alguém… Se eu estou fazendo amor com meu marido, não vejo incompatibilidade nenhuma.”
“Adoro meu marido, estamos casados há 31 anos e não vejo incompatibilidade nenhuma [desse fato com a fé católica]”, afirma. “Eu sou um resiliente católico apostólico romano. E a Igreja já evoluiu bastante: na Idade Média, ela nos queimava na fogueira.”
A família
Do fim dos anos 1980 ao início da década de 1990, Reis passou algumas temporadas na Europa. Segundo ele, foi um período de auto-aceitação. “Eu falava que era gay, mas não me sentia bem. Aí sempre li, e li muito, que o problema era a cultura. Ora, se era a cultura, então resolvi mudar a cultura. E foi muito bacana. Morei na Espanha, na Itália, na França. E na Inglaterra, onde encontrei o amor da minha vida”, diz ele.
Começava a se formar a sua família. Toni Reis e David Harrad, se casaram na Inglaterra em 29 de março de 1990. No fim de 1991, o casal decidiu se mudar para Curitiba. Desde então, Reis tornou-se ativista pela causa dos direitos dos homossexuais, também engajado em campanhas de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, especialmente a Aids.
Passou a atuar no Grupo Dignidade e foi um dos idealizadores e fundadores da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). Atualmente, é o diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI+.
“Trabalho 16 horas por dia como militante”, afirma.
Resolveu fazer uma nova graduação — em pedagogia, pelo Centro Universitário Internacional (Uninter). Estudou também para se tornar especialista em sexualidade humana, mestre em filosofia na área de ética e sexualidade e doutor em educação.
Reis e Harrad decidiram se tornar pais e partiram para a adoção. Em 2011, Alyson tornou-se o primeiro filho deles. Três anos mais tarde, a família cresceu com a chegada de Jéssica e de Filipe. Hoje eles têm, respectivamente, 19, 17 e 15 anos.
“Quando eles chegaram, pensamos que não os batizaríamos. Deixaríamos que eles escolhessem a religião que quisessem”, conta Reis. “Mas por várias vezes eles chegavam em casa, da escola ou de alguma atividade, e reclamavam que as pessoas perguntavam a religião, que tinham de colocar a religião [em algum formulário] e eles não sabiam o que fazer.”
Diante de sua orientação — “escolham a religião que quiserem” —, os filhos perguntaram qual era a dos pais. “Respondi que eu, Toni Reis, sou católico apostólico romano, que inclusive tinha me preparado para ser seminarista e queria ter me tornado irmão [religioso]. E que o David é anglicano, da Igreja Anglicana. E que ambos somos praticantes”, narra. “Aí nós debatemos bastante e eles pediram para também terem uma religião.”
Foi em comum acordo que optaram pelo catolicismo. Então começou a saga. Reis conta que foram quatro paróquias consultadas em Curitiba, e quatro nãos — tudo porque as crianças eram filhas de um casal homoafetivo. “Primeiro falavam que não podiam porque não éramos casados [na igreja]. Aí, quando eu falei que ‘então a gente casa’, perguntavam quem era minha esposa. Então eu falava: ‘não é ela, é ele’. Aí não podia. Eu já estava ficando muito triste”, comenta.
Mas Reis não parece ser do tipo que se conforma com negativas. Procurou a arquidiocese de Curitiba. “E foram super gente boa, disseram que claro que sim, que batizariam, afinal quem seriam batizados não éramos nós [o casal], mas sim nossos filhos. Pediram que eles fizessem um ano de catecismo”, conta.
Em 23 de abril de 2017, os três foram batizados na Catedral Basílica Menor de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, principal endereço católico da arquidiocese de Curitiba. Foi um dia de muita emoção. Reis diz que chorou pelo menos três vezes durante a cerimônia, que durou 1h15.
A alegria era tanta que a família decidiu mandar as fotos para o Vaticano. Alguns meses depois, veio a carta com a resposta papal. “Recebemos os parabéns e os votos de felicidades divinas para a nossa família, abundância das graças divinas”, enaltece.
“Veio com a foto do papa. Fiquei muito feliz.”
Casamento
No fim de 2018, em meio a um movimento de temor por retrocessos nos direitos civis após a eleição do presidente Jair Bolsonaro, Reis e Harrad decidiram se casar oficialmente no Brasil. Eles já haviam sido, cinco anos antes, o primeiro casal gay do Paraná a registrar uma união civil estável em cartório.
O casamento ocorreu no dia 8 de dezembro de 2018, no Cartório Ermelino de Leão Neto e, em seguida, na Catedral Anglicana de São Tiago — ambos em Curitiba. A partir de então, eles assumiram os sobrenomes um do outro: tornaram-se Antonio Luiz Martins Harrad Reis e David Harrad Reis.
Gerida de forma descentralizada ao redor do mundo, a Igreja Anglicana brasileira passou a aceitar celebrações homoafetivas em 2 de junho de 2018, seguindo o exemplo de dioceses norte-americanas e canadenses.
Se na igreja de Harrad essa questão foi resolvida, a Reis restou ver, de lá para cá, o papa Francisco enfatizar a necessidade de acolhimento aos homossexuais, mas também deixar claro que não há brechas para um dia um casamento religioso católico entre pessoas do mesmo sexo.
“A Igreja [Católica] evoluiu muito, ela teve todos os problemas com questões como escravidão e guerras e hoje eles não aceitam ainda o casamento [homoafetivo]. Olha, eu continuo [católico]. Quem sabe daqui a 2 mil anos, nós não vamos ter o pedido de perdão da Igreja? Assim como foi feito com Galileu [em 1992, o então papa João Paulo II, pediu perdão pela condenação do cientista], espero que também peçam perdão aos gays, lésbicas e pessoas trans”, comenta Reis.
Diante da origem histórica da Igreja Anglicana, das semelhanças mantidas com o catolicismo e da relação estreita entre ambas, Reis diz que ele e o marido preparam um processo solicitando que o Vaticano também reconheça o casamento deles, celebrado em 2018. “Devemos receber o ‘não'”, resigna-se. “Mas, pelo menos, vamos mostrar que insistimos.”
“Eu não ligo. Eu vejo a parte boa. Vou à igreja com nossos filhos e meu esposo e ali é o momento de ter nosso encontro com Deus”, acredita ele. “Sou militante para que ninguém sora o que eu sofri. A tortura que a Igreja, e que tantas igrejas fundamentalistas, fazem com o gay, com a lésbica e com a pessoa trans… Eles vão arder no fogo do inferno.”