Apesar de nascido em Belém-PA, foi em Ribeirão Preto-SP que Sócrates sempre se sentiu em casa – tanto que chamava a cidade de “útero materno”. Na ‘Califórnia Brasileira’, o elegante meia de 1,92m chamou atenção do Brasil… E de um jornalista que possivelmente mudou toda a trajetória de sua carreira e vida.
‘Doutor’ não só por apelido, Sócrates levou lado a lado sua carreira de jogador e a faculdade de medicina, sua prioridade. “Só quero pagar gasolina e cerveja com os trocados que ganho no Botafogo”, dizia. Mas seu talento dentro das quatro linhas era tão excepcional que, em 1978, com seus estudos já encerrados em Ribeirão Preto, chegou a hora de considerar uma mudança de uniforme.
Pelo Botinha, já tinha marcado 75 gols em 108 jogos e levantado o título da Taça Cidade de São Paulo em 1977. Além disso, foi o artilheiro do Paulistão em 1976, com 15 gols. Seu grande parceiro no time do interior, Geraldão, já tinha sido contratado pelo Corinthians em 1975, e a capital parecia ser o destino de Sócrates, mas tudo indicava que no Morumbi. Até que Walter Silva apareceu.
Walter foi jornalista, radialista, narrador esportivo e produtor musical. Sem esconder seu amor pelo Corinthians, desenvolveu uma linda carreira pelas maiores rádios e TVs do Brasil. Na TV Globo desde 1975, o ‘Pica-Pau’, como era conhecido, dirigia a parte musical do Fantástico e também narrava partidas. Em 1978, foi escalado para fazer um jogo do Botafogo direto do Estádio Santa Cruz, e lá viu com os próprios olhos o que aquele esguio camisa 8 sabia fazer. Evidentemente, ficou encantado.
Algum tempo depois, Walter encontrou Vicente Matheus, lendário presidente do Timão, por acaso, em um coquetel promovido pelo Unicór, que lançava seu seguro saúde. Ainda durante o evento, o jornalista falou sobre o jogador para o cartola e avisou do interesse do São Paulo, mas a resposta foi um pedido: “Você pode me ligar amanhã?”. Quem conta esses detalhes é Déa Silva, viúva de Walter desde 2009. No dia seguinte, ele ligou.
Quem lembra do dia seguinte é Carlos Eduardo, o terceiro dos quatro filhos do jornalista: “Uma vez o ouvi ligar pro Vicente Matheus e dizer: “Matheus, tem um craque no Botafogo de Ribeirão chamado Sócrates. Você precisa levar pro Corinthians”. O Matheus disse: “Como é o nome do menino mesmo?”. “Sócrates, pode contratar que você não vai se arrepender!” respondeu”.
O resto é história. Ainda em 1978, o presidente foi até Ribeirão e fez do médico o jogador mais caro da história do futebol brasileiro naquele momento. Mas para isso, ainda teve que dar um ‘nó’ no São Paulo.
Ao saber que o rival também tinha interesse no craque, o presidente do Corinthians desenvolveu uma estratégia para tirar o time do Morumbi da corrida. Antes de ir para Ribeirão, o cartola corintiano marcou uma reunião com Antonio Nunes Leme Galvão, presidente do tricolor paulista e natural de Ribeirão – fato que o fazia conhecer muito bem a jovem estrela. Enquanto Vicente viajava, seu irmão e vice, Isidoro falava com o são-paulino sobre Chicão, volante do time de Rubens Minelli. Com as atenções desviadas, o Corinthians agia rápido e contratava um de seus maiores ídolos.
Dirigentes do Botafogo receberam o presidente do Timão na chácara de Hamilton Mortari, um desses cartolas. A reunião começou pela manhã e terminou só à noite, como conta Igor Ramos no livro “Botafogo – Uma história de amor e glórias”. A primeira proposta foi de 4 milhões de Cruzeiros, o que gerou desdém dos botafoguenses. Vicente Matheus ameaçou ir embora, mas foi acalmado. O valor aumentou para 4,5 milhões, mas ainda não foi suficiente.
Após conversas e mais conversas, o negócio foi fechado em quase 6 milhões de Cruzeiros, algo em torno de 350 mil dólares. O presidente da equipe de Ribeirão ainda não estava satisfeito e tentava convencer o craque a ficar, mas a vontade do jogador e a insistência de Vicente Matheus fizeram o martelo bater.
“Quando eu me formei e decidi continuar jogando bola, eu falava que o primeiro time grande que chegasse eu iria embora. Isso estava certo com o Botafogo”, disse Sócrates.
“Se era para ficar no futebol, eu tentaria voos mais altos. Não havia outra possibilidade”, Sócrates
Apesar de Sócrates ser a maior venda da história do futebol brasileiro naquele momento, o Doutor não veio para a capital viver como rei. Pelo menos não de cara…
“Eu ganhava no Corinthians o mesmo que ganhava no Botafogo. Depois eu vi a besteira que fiz, porque tinha que pagar aluguel lá. O contrato era exatamente o mesmo. Alias, a briga que eu tive com o Matheus depois foi por causa disso. Eu ganhava 23 mil contos e pagava 13 mil de aluguel. Em um ano eu cheguei na seleção e tentei antecipar a renovação de contrato para ganhar um pouco mais. Na época, o Zico ganhava 450 contos e eu 23. E estávamos no mesmo nível no futebol brasileiro. Eu propus ao Matheus ganhar 150, e sabe por quanto renovei no ano seguinte? Por 1,7 milhão, porque também tinha uma inflação danada”, concluiu o craque.
Pelo Timão, Sócrates marcou época dentro e fora de campo, tanto como jogador quanto como ativista. Eternizou a comemoração com o punho levantado em riste, foi um dos expoentes da Democracia Corintiana e, da boca de Vicente Matheus, passou por mais um causo curioso. “O Sócrates é inegociável, invendável e imprestável”, disse o presidente em um dos mais famosos erros de português da história do futebol.