Na manhã de 20 de agosto, Carlos Samuel Galvão, de 20 anos, estava a caminho da aula de música. Enquanto seguia em direção ao ponto de ônibus, uma bala perdida quase o acertou. Ele foi protegido do tiro por algo que considera que já havia salvado a vida dele anteriormente: a música.
Samuel, como é conhecido, carregava um violino nas costas quando ficou em meio a um tiroteio na região da comunidade em que mora, no Rio de Janeiro. Um dos disparos foi na direção do jovem e atingiu o instrumento musical. “O violino serviu como um escudo e salvou minha vida”, diz.
“Se não estivesse com o violino, eu seria só mais um nas estatísticas. Ia passar na reportagem que houve um ataque de criminosos fortemente armados, a mesma história de sempre, por um ou dois dias falariam sobre o assunto e depois iriam abafar o caso. Não ia acontecer nada, como sempre”, diz o jovem à BBC News Brasil.
Ele sabe da trágica estatística de mortes de pessoas negras no país e conhece algumas das histórias de vítimas da violência. “Eu conhecia várias pessoas negras que foram vítimas de balas perdidas ou ‘achadas'”, diz.
Ele conhecia, por exemplo, a jovem Kathlen Romeu, de 24 anos, que morreu em junho deste ano, após ser baleada durante uma ação da Polícia Militar na comunidade do Lins de Vasconcelos, na Zona Norte do Rio.
“A gente chegou a frequentar a mesma igreja. Mas depois a gente frequentou igrejas em locais diferentes. Nunca mais a vi, até que um tempo depois vi na televisão que ela tinha morrido”, comenta Samuel. “Acredito que poderia ter acontecido algo semelhante comigo naquele dia (20 de agosto), mas Deus não deixou”, acrescenta o jovem.
Os negros representaram 77% das vítimas de homicídios no país em 2019, segundo o Atlas da Violência 2020, divulgado no fim de agosto deste ano pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
O dado, o mais recente sobre o tema, aponta que a taxa de homicídios entre os negros corresponde a 29,2 por 100 mil habitantes. O mesmo dado entre os não negros é de 11,2 para cada 100 mil. Isso indica que o risco de um negro ser assassinado no Brasil é 2,6 vezes maior que uma pessoa não negra.
‘Antes da música, eu não sabia o que fazer da vida’
Em meio à crescente violência contra pessoas negras no país, Samuel avalia que a música se tornou fundamental para ele e para outros jovens.
“Costumo dizer que foi fundamental para a minha trajetória. Antes da música, eu não sabia o que fazer. Sabia que ia crescer, arrumar emprego e ser mais um trabalhando em uma área que não gosta. Mas quando me encantei pelo violino, descobri que ia ser nele que eu ia trabalhar com o que gosto”, afirma.
Ele mora no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio de Janeiro, e viu a oportunidade de estudar um instrumento quando a organização não governamental Ação Social pela Música do Brasil chegou à comunidade.
A organização tem o objetivo de oferecer educação musical para crianças e adolescentes que vivem em áreas vulneráveis.
“Uma tia me avisou do projeto e eu fui com minha mãe. Chegando lá, escolhi aprender violino, porque sempre achei um instrumento muito bonito, por causa do filme Titanic. Falei: ‘pô, vou aprender a tocar esse aqui'”, diz o jovem.
Nas primeiras aulas, ele, que na época tinha 14 anos, ficou desanimado porque pensou que não era o que realmente queria. “Mas quando parei, senti uma falta muito grande e voltei no mês seguinte cheio de gás”, diz. “Fui me destacando e assim, dentro de, mais ou menos, um ano eu já estava na orquestra tocando”, acrescenta.
Posteriormente, ele foi selecionado para a Orquestra Sinfônica Jovem do Rio de Janeiro, fundada pela Ação Social Pela Música para os alunos que se destacam.
Assim como Samuel, outros jovens que ele conhece também viram novas chances de um futuro melhor ao participar do projeto. “Espero que tenha muito mais projetos assim, porque ajuda muitas pessoas a não entrarem na vida errada. O projeto salva a vida legal. Eu já tive conhecidos que perderam a vida ao entrar pro crime, porque não tiveram oportunidades”, diz.
“Quando o projeto chegou, muita gente quis participar e está nele até hoje. Se não fosse pelo projeto, muita gente estaria nessa vida errada”, comenta.
Diretora e fundadora da Ação Social pela Música do Brasil, Fiorella Solares diz que o projeto ajudou milhares de jovens. “Tem sido muito frutífero. O projeto avançou muito e proporcionou a inclusão social através da educação musical”, diz.
Além do Rio de Janeiro, a iniciativa também está presente nas periferias de João Pessoa (PB) e em Ji-Paraná (RO). Atualmente, segundo Fiorella, o projeto atende 4,7 mil alunos no país, entre crianças e adolescentes. Ela avalia que a iniciativa ajuda na redução das desigualdades sociais no Brasil, ao levar cultura a locais que dificilmente têm acesso ao ensino da música.
Ela considera que Samuel é um exemplo positivo do projeto. “Creio que ele vai poder se profissionalizar na área, porque tem dedicado mais tempo à música e tem sido muito elogiado pelo professor. Estudar música exige disciplina, é preciso dedicar muitas horas, como nos casos dos esportistas”, afirma.
Com o passar dos anos, Samuel ganhou cada vez mais destaque na música. Junto com o projeto, já viajou para diversas regiões do Brasil, além de ter conhecido Nova York, nos Estados Unidos, para participar de uma apresentação com o grupo.
A bala perdida
A dedicação de Samuel faz com que ele queira aprender cada vez mais. Na manhã de 20 de agosto, ele tinha aula de violino. Quando acordou, ouviu barulhos de tiros na comunidade.
Segundo a Polícia Militar do Rio de Janeiro, naquela manhã houve um ataque a tiros contra a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) Macacos. Conforme nota encaminhada à BBC News Brasil, os policiais revidaram e começou um tiroteio.
“Os suspeitos fugiram e, após estabilizado o terreno, foram encontrados um estojo calibre 9mm, munições 5.56, um rádio comunicador. O material apreendido foi encaminhado à 20ºDP, onde a ocorrência foi registrada”, informa nota da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Por volta das 7h, Samuel informou ao professor de violino sobre a situação na comunidade. A aula dele estava marcada para 9h e ele costuma levar cerca de 40 minutos no trajeto. O jovem temia que os tiros não parassem nas horas seguintes. “O professor falou que eu poderia chegar a qualquer hora, quando eu conseguisse sair de casa”, conta Samuel.
“É normal deixar de sair de casa por causa de tiroteio. Querendo ou não, a gente meio que se acostumou com a violência. A verdade é essa. Acostumados ou não, isso é parte da nossa realidade”, diz o jovem.
Os barulhos de tiros cessaram por volta das 9h20. “Liguei pro professor e falei que chegaria rapidinho. Ele me disse para ir com calma e tranquilo”, diz Samuel.
O jovem desceu em direção a um ponto de ônibus. Nas costas, levava o violino em um estojo, que tinha uma alça para ser carregado. “Sempre carreguei nas costas para ficar com as mãos livres”, diz o jovem.
Quando chegou perto do ponto de ônibus, em uma área nas proximidades da comunidade, Samuel ouviu o tiroteio recomeçar. “Estava muito forte, parecia que estavam usando vários tipos de armas e granadas. Todo mundo se abaixou”, relata. Ele estava na calçada e sequer teve tempo para abaixar também.
“Foi tudo muito rápido. Eu parei e virei pro lado, dei um passo pra frente e ouvi um tiro muito estrondoso atrás de mim. Não deu tempo de me abaixar ou correr. Na hora, pensei: bateu um tiro no prédio “, diz Samuel.
O jovem olhou para trás e viu que nenhum tiro parecia ter atingido o prédio próximo a ele. “O pessoal começou a correr em minha direção para me socorrer. Eu comecei a ficar desesperado, achei que eu fui baleado e não senti porque estava com o sangue quente. Tirei a camisa e vi que não tinha acontecido nada comigo”, diz.
Ele olhou o estojo do violino e encontrou o buraco do tiro. “Eu abri (o estojo) e vi o violino todo quebrado, a bala estava lá dentro. Foi um desespero absurdo”, relata.
Se não tivesse dado um passo para frente no momento do tiroteio ou se não estivesse com o violino nas costas, Samuel acredita que teria sido atingido pela bala.
“O tiro poderia ter acertado minha costela. Eu poderia ter morrido. Foi desesperador. Num segundo você tá vivo e no outro pode estar morto. Passa um filme na cabeça. Você fica ‘piradão’ com isso”, desabafa o jovem.
Os números dos últimos anos são totalmente desfavoráveis a jovens negros como Samuel. O Atlas da Violência 2020 aponta que entre os anos de 2009 a 2019, o número de negros que foram vítimas de homicídio cresceu 1,6% (subiu de 33.929 vítimas em 2009 para 34.466 em 2019). Já os registros entre pessoas não negras tiveram redução de 33% no mesmo período (de 15.249 em 2009 para 10.217 em 2019).
O risco aumenta quando é jovem. De 2009 a 2019, foram 623.439 vítimas de homicídio no Brasil, sendo que 53% desse total eram pessoas com idades entre 15 e 29 anos.
‘Quero me tornar músico profissional’
Após o susto por quase ter se tornado uma trágica estatística de vítimas de homicídio, Samuel teve uma outra preocupação: como consertar o violino atingido pela bala.
O instrumento que Samuel carregava naquele dia era emprestado, porque o violino que ele usava nas aulas, que pertence ao projeto social, estava em manutenção.
“Eu fiquei desesperado porque o violino não era meu, muito menos do projeto. Na semana anterior, eu tinha uma prova na orquestra para avaliar se o aluno estava evoluindo e, como o violino que eu usava tinha soltado uma peça, precisei pegar um outro emprestado”, diz.
“Esse violino que eu estava no dia do tiroteio era de um luthier (especialista em instrumentos de corda), que me emprestou por causa da prova que eu tinha. Eu fiz a prova na orquestra e passei. Naquele dia (20 de agosto), eu iria para a aula e depois devolveria o violino”, conta o jovem.
Samuel não tinha condições de arcar com os custos de um novo violino para entregar ao luthier. A única fonte de renda dele é a bolsa que recebe na orquestra, que o auxilia nos gastos com transporte e alimentação.
Com a ajuda dos responsáveis pela Ação Social pela Música do Brasil, ele criou uma vaquinha online com o objetivo de arrecadar R$ 8 mil, para ajudá-lo a pagar o violino atingido pela bala perdida (cerca de R$ 4 mil). O restante do valor será para auxiliá-lo com a manutenção do instrumento e também para apoiar despesas futuras do jovem com a música.
Até a tarde desta terça-feira (14/09), o jovem já havia arrecadado R$ 5,9 mil, doados por 54 pessoas. “Fiquei muito feliz com o apoio que recebi”, afirma.
Além da vaquinha, Samuel também foi ajudado pelo violinista Alessandro Borgomanero, que soube do caso da bala perdida e doou um violino para Samuel. Mas o instrumento deve permanecer com o jovem somente se ele continuar na música. Caso deixe a área, deverá devolver o item ao projeto social, para que outros alunos possam utilizá-lo.
Mas Samuel deve continuar com o violino que recebeu, pois não pensa em desistir da música. O jovem deve concluir o ensino médio em breve, “por não ter dado atenção ao colégio no passado”, e já tem planos para ingressar na universidade. “Quero me tornar músico profissional e viver disso”, afirma.