Sem consenso sobre o texto e com baixo quórum para votação, a Câmara dos Deputados adiou nesta quarta-feira (27) a votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios. O texto é uma das apostas do governo federal para viabilizar o Auxílio Brasil de R$ 400, programa social que deve substituir o Bolsa Família.
Os parlamentares encerraram a discussão da proposta em primeiro turno nesta quarta-feira (27). A votação, contudo, deve ficar para a próxima semana, no dia 3 de novembro. A informação foi dada pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, após reunião com lideranças partidárias e com o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL).
Se houver acordo com a oposição, porém, Lira não descarta tentar a votação ainda nesta quinta-feira (28).
“A depender dessa conversa com a oposição, se nós construirmos entendimento que dê conforto e segurança a gente pode votar amanhã [quinta-feira]”, disse.
Passada a etapa da Câmara, a PEC dos Precatórios ainda precisa ser aprovada, em dois turnos, pelos senadores.
O adiamento preocupa o governo, que conta com a aprovação do texto nas duas Casas para garantir o pagamento do benefício ainda em dezembro deste ano.
“Já estamos com um cronograma bem apertado. Começa a me preocupar a operacionalização deste pagamento [o do Auxílio Brasil], que envolve um bastidor muito grande, é uma operação gigantesca para poder fazer chegar esse recurso a mais de 17 milhões de brasileiros necessitados”, disse o ministro da Cidadania, João Roma, na Câmara.
O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, também esteve na Câmara nesta quarta-feira (27), na tentativa de construir um acordo para a votação da PEC.
Por se tratar de uma alteração na Constituição, a proposta exige pelo menos 308 votos favoráveis, em dois turnos. Para garantir a aprovação, deputados estimaram que seria necessária a presença de 490 a 500 deputados.
Contudo, até o início da noite, o quórum se manteve baixo, menos de 450 parlamentares estavam presentes. Um dos motivos, na avaliação dos parlamentares, é que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), decidiu retomar nesta semana a votação presencial das matérias.
Até a semana passada, devido à pandemia, os deputados podiam votar por meio de um sistema remoto, diretamente dos seus estados. A retomada da votação presencial exige que os deputados venham até Brasília.
“Estamos numa semana de volta aos trabalhos, com algumas resistências, com algumas dificuldades, alguns parlamentares com muita idade, com algumas comorbidades que temos que ajustar e temos que ter paciência”, disse Lira após o adiamento.
O presidente da Câmara descartou mudar o sistema para retomar a possibilidade de votações virtuais.
“Seria, no meu ponto de vista, uma situação singular alterar [o sistema] e poderia ser acusado de estar fazendo qualquer tipo de proteção para uma matéria de mais dificuldade.”
A proposta
Em linhas gerais, a PEC fixa um limite, a cada exercício financeiro, para as despesas com precatórios —dívidas da União já reconhecidas pela Justiça. Além disso, altera a regra de correção do teto de gastos.
A estimativa do relator, Hugo Motta (Republicanos-PB), é que as mudanças liberem quase R$ 84 bilhões para despesas no ano que vem, ano eleitoral. Na prática, a proposta abre margem para o governo contornar o teto de gastos, aprovado em 2016.
Técnicos do Congresso calculam que esse espaço orçamentário em 2022 pode ser ainda maior e ultrapassar R$ 95 bilhões.
Segundo estimativas, cerca de R$ 50 bilhões seriam usados para turbinar o Auxílio Brasil, e o restante deve ser usado para correção dos benefícios previdenciários — gasto obrigatório do Executivo que deve custar entre R$ 16 bilhões e R$ 20 bilhões no ano que vem.
Na avaliação de técnicos, a folga orçamentária também deve encorpar recursos para parlamentares no próximo ano, como o pagamento de emendas de relator, criticadas pela falta de transparência e de paridade entre os congressistas, e para o fundo eleitoral. O valor pode chegar a R$ 25 bilhões.
A divisão exata do espaço liberado pela PEC no teto de gastos só será definida na votação do Orçamento de 2022.
Mais cedo, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), afirmou que avaliará a possibilidade de levar o texto diretamente à votação no plenário do Senado, sem precisar passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Teto de gastos
Atualmente, a fórmula para corrigir o teto de gastos considera o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) apurado entre julho de um ano e junho do ano seguinte.
A escolha desse período se justifica porque é o dado disponível nos meses de agosto, quando o governo precisa enviar ao Congresso o projeto de Orçamento do ano seguinte.
Com a mudança proposta pela PEC, o IPCA usado na correção do teto passa a ser o índice acumulado entre janeiro e dezembro.
A regra proposta, segundo os técnicos do Congresso, é “totalmente casuística” — ou seja, foi pensada apenas para permitir gastos extras no próximo ano.
Como o Orçamento deve ser enviado pelo governo em agosto do ano anterior, o cálculo do teto deve se basear em estimativas do IPCA em dezembro, que podem ser atualizadas durante a tramitação do Orçamento.
Caso o índice observado no fim do ano seja diferente da projeção, a PEC estabelece que a diferença seja compensada no ano seguinte — isto é, ao mandar o próximo Orçamento, o governo deve adicionar ou suprimir a eventual diferença no cálculo.
Contudo, na prática, o texto deixa na mão do governo o poder de interferir no teto de gastos, o que pode se tornar um problema principalmente em anos eleitorais.
De 2023 em diante, não há qualquer garantia de que o cálculo de janeiro a dezembro seja mais vantajoso que o modelo atual. Ou seja, a mudança no período de apuração pode provocar um aperto nos orçamentos federais nos anos seguintes.
Essa mudança no cálculo também afeta o pagamento dos precatórios, já que a PEC limita a alta dessas despesas pelo mesmo índice. Pelo texto, o limite proposto é o montante pago em precatórios em 2016, ano da aprovação do teto de gastos, corrigido pela inflação.
Técnicos do Congresso alertam que, com a redação da PEC, o Executivo poderia inflar a estimativa do IPCA para acomodar, artificialmente, gastos mais elevados — conta que só seria paga pelo governo seguinte.
O diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, lembrou que em 2016, quando o teto de gastos foi criado, a proposta de corrigir o limite pela inflação do final do ano foi descartada justamente por tornar o projeto do Orçamento mais dependente de projeções.
“É ‘oportunístico’. Já temos um encontro marcado para mudar tudo em 2023 de novo”, criticou.
Vacinação
De acordo com técnicos, caso seja aprovada ainda esse ano, a PEC abriria um espaço no orçamento superior a R$ 30 bilhões. Porém, o relatório limita esse reajuste a R$ 15 bilhões.
O valor seria suficiente, segundo técnicos, para pagar despesas com a vacinação contra a Covid e uma ampliação no Auxílio Brasil ainda esse ano — os dois gastos chegariam a cerca de R$ 12 bilhões.
O próprio relatório prevê que esse saldo de R$ 15 bilhões deve ser usado exclusivamente para despesas da vacinação contra Covid ou “relacionadas a ações emergenciais e temporárias de caráter socioeconômico” — descrição em que se encaixa o Auxílio Brasil.
Na avaliação de técnicos, esse dispositivo pode resolver uma lacuna sobre recursos para a vacinação no ano seguinte. Como o governo encaminhou o projeto do Orçamento de 2022 sem previsão orçamentária para os imunizantes, essa previsão seria uma forma de garantir os valores ainda em 2021.
Educação
Um dos pontos polêmicos é que a proposta flexibiliza o pagamento de precatórios do antigo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) —atual Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
Este fundo é o principal fundo de financiamento da educação básica no país.
Segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), a maioria dos precatórios a serem pagos são de dívidas relacionadas ao Fundef, dos quais os professores têm direito a receber uma parcela na forma de abono.
Ainda conforme a entidade, a dívida da União com o fundo, que hoje gira em torno de R$ 30 bilhões, será parcelada e paga ao longo de nove anos.
Crítico à PEC, o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), disse que o texto é um “verdadeiro meteoro sobre a credibilidade fiscal e a segurança jurídica do país”.
“[A PEC] É uma combinação bombástica entre fura teto, pedalada fiscal, calote aos credores e um verdadeiro assalto aos professores e demais trabalhadores do magistério do nosso país, na medida em que parte dos precatórios são dos Fundef, dos quais os professores tem direito de receber 60% nas formas de abono mais que, pela PEC, serão compensados com débitos dos estados ou parcelados em dez vezes atualizados pela taxa básica de juros. O que significa que a décima parcela não vai valer nada”, disse Ramos.