Ler estimula o pensamento crítico e o poder de compreensão, aguça o pensamento analítico e não se limita apenas às disciplinas linguísticas; a habilidade de compreensão é aliada no desempenho de qualquer estudante no início da jornada acadêmica e continua a contribuir na formação intelectual por toda a vida, defendem educadores.
Neste domingo (28), milhares de alunos farão a segunda etapa do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com foco em Ciências Biológicas e Matemática. E, mesmo em áreas consideradas de raciocínios exatos e precisos, a interpretação segue sendo aliada.
O professor de Filosofia na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio defende que tanto a Ciência quanto a Matemática são linguagens, com estrutura e “gramáticas” próprias, e que o exercício de compreensão de texto é fundamental, porque é na forma de textos – enunciados, proposições, demonstrações – que as ciências e a matemática chegam até nós.
“Sem uma leitura matemática do mundo (que mede, quantifica, divide, percebe as proporções e as relações entre os fatos e os eventos), não é possível a ciência da natureza ou qualquer outra. Portanto, é fundamental a compreensão de texto para se entender a linguagem das ciências e a linguagem matemática, porque, novamente, os processos de leitura são muito similares, tanto em um quanto em outro âmbito”, explica o professor doutor em Filosofia.
Assim, explica o professor, quando percebemos que o discurso científico e as demonstrações matemáticas não são afirmações arbitrárias ou abstrações sem sentido, notamos a importância de favorecer a capacidade de interpretação e compreensão dos alunos em todas as linguagens.
“Tanto o mundo empírico, da natureza, quanto o mundo simbólico dos números. Por isso, o exercício de compreensão de texto é fundamental, porque é na forma de textos – enunciados, proposições, demonstrações – que as ciências e a matemática chegam até nós”, acrescenta Euzebio.
Ele destaca que a incapacidade de ler direito, sem compreensão adequada dos textos, traz uma grande dificuldade de compreender o que o enunciado de uma questão sobre ciência ou matemática pede.
“Ler corretamente um enunciado de prova é condição necessária para sermos capazes da leitura que vem a seguir, aquela da linguagem específica da questão de biologia, de química ou de física”, afirma.
Analfabetos funcionais no Brasil
Dados do Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf) apontam que 30% da população brasileira, entre 15 e 64 anos, é analfabeta funcional. Ou seja, apresentam limitações na leitura, escrita, matemática e no desenvolvimento de atividades cotidianas, como o discernimento de verdade e invenção.
Destes considerados analfabetos funcionais pelo Inaf, 13% já se formou ou está cursando o Ensino Médio, logo, passaram por todos os níveis escolares e continuam inaptos à tais tarefas.
“Ser não apenas alfabetizado, mas ter a capacidade de interpretar e de escrever minimamente, é condição incontornável para se viver de modo satisfatório nas sociedades contemporâneas. Sabemos quando alguém não é capaz de ler ou escrever. Porém, as coisas se complicam quando, ao sabermos lidar com a linguagem escrita, mas de forma insatisfatória, acreditamos que lidamos com ela de maneira suficiente”, diz o professor Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio.
Para a professora de Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa na Faculdade de Educação da USP Neide Luzia de Rezende a pandemia de Covid-19 tornou ainda mais grave o desempenho educacional adotado pelas escolas.
“A escola, cada vez mais dilapidada, alunos trancafiados entre grades, com professores mal pagos e mal formados, com seus métodos atrasados, não tem fôlego democrático para fazer frente. Essa pandemia veio tornar pior o que já era muito ruim”, destaca a professora.
Internet x Compreensão de texto
Com a grande presença das redes sociais, principalmente entre os jovens, é impossível dissociar a inclusão tecnológica com os impactos causados pela deficiência em interpretação de texto.
Para a professora Neide Luzia de Rezende, “ideologias manipuladas por rancores encontraram espaço para se juntarem apenas entre iguais numa simbolização rasteira, uma vez que são comunidades que comunicam apenas para si e não acessam o outro”.
Isso é bem comum, afirma o professor de filosofia da USP. Alguém escreve algo irônico em uma rede social, que é interpretado de forma literal por quem não é capaz de perceber a figura da ironia.
“Eu me lembro, por exemplo, de uma discussão em que pessoas criticavam a música Mulheres de Atenas, de Augusto Boal e Chico Buarque, por incentivar a submissão da mulher, quando o que é dito pela canção é justamente o contrário. Tentamos superar essa dificuldade, algumas vezes, fazendo uso de emojis ou hashtags, o que, ainda que sejam elementos linguísticos, exemplifica a ambiguidade que enfrentamos na expressão escrita”, afirma Euzebio.
Por isso, segundo o educador, é fundamental expor os alunos às diversas formas de gêneros, estilos e figuras da linguagem escrita, e exercitá-los nelas.
“A percepção de nuances, aliada às exigências de bons argumentos e boas razões podem nos proteger, ainda que não totalmente, das chamadas fakes news, dos constrangimentos em postagens nas redes sociais, e dar-nos condições de elaborar textos que cumpram essas exigências, seja na tarefa de se responder uma prova ou conseguir um emprego”, diz.
Como melhorar a capacidade de interpretação?
Só se aprende a ler, lendo, e quanto mais se lê, mais se compreende. A capacidade de alguém interpretar textos é diretamente proporcional à quantidade de textos lidos por essa pessoa, esclarece de forma objetiva o professor de filosofia.
“Textos de todo tipo: prosa e poesia, romances, ensaios, biografias, notícias de jornal, até mesmo bula de remédio. É assim que ganhamos em repertório, que adquirimos ferramentas para lidar com os textos e com a realidade (que exige leitura e crítica da mesma forma que um texto)”, diz Euzebio.
Segundo a professora e pesquisadora Neide Luzia de Rezende, os diferentes modos de organização da linguagem em diferentes gêneros, sejam eles orais ou escritos, revelam ângulos da vida social.
“Ou seja, para compreender o mundo precisamos nos comunicar por meio de diferentes formas textuais: a notícia, a mídia, que informam sobre os acontecimentos; os documentos de leis e normas, sobre a gestão da vida pública; os literários que recriam ficcionalmente o mundo.
A educadora acrescenta que ler bons textos na escola ensina a conhecer o idioma, a dominar os níveis da língua em seus diferentes registros, a entender em que espaço social os textos circulam, quais suas finalidades de comunicação e – evidentemente – ajudam a ler com proficiência os enunciados das questões do vestibular.
“Claro que tais enunciados correspondem ao universo semântico das áreas de conhecimento e muitas vezes a uma terminologia específica, por isso é importante que estudem as matérias e conheçam os respectivos conceitos, entretanto, tendo exercitado a reflexão sobre diferentes textos, incluindo aí a literatura, os sentidos emergem com mais clareza e rapidez, o que é muito importante para a realização da prova”, diz a professora.
A contribuição da filosofia nesse processo
O que se espera que a educação faça é nos preparar para sermos capazes de criticar, ou de fazer bons juízos, a partir do exercício da compreensão. A filosofia, que exige argumentos válidos e opera por meio da lógica, da consistência no uso da linguagem, e que chega até nós como tradição literária, pode contribuir neste processo, explica o professor de Filosofia da USP.
“A filosofia pode nos ajudar ao nos ensinar que, mesmo quando um pensador apresenta suas ideias como definitivas e absolutamente certas, um outro pensador encontrará motivos para criticar ou não concordar com elas. Para muitos, isso é uma fraqueza da filosofia, que nunca dá respostas definitivas sobre nada, e ler esses autores e autoras seria perda de tempo”, diz.
“Quem pensa assim se engana porque o que a filosofia nos mostra é, ao mesmo tempo, tanto a potência quanto a modéstia do pensamento. A potência, porque somos capazes de expandir os limites que damos ao mundo, encontrando nele sempre novos significados, e a modéstia porque essa é uma tarefa que não se encerra, jamais, sempre renovada em cada geração humana”, acrescenta o professor.