O verão de 2022 é um dos mais esperados pelo setor de bares e restaurantes. A clientela mais disposta a sair de casa, somado ao avanço da vacinação contra a Covid-19 em todo o país, trazem esperança de que o setor recupere o movimento dos tempos pré-pandemia.
Há, porém, uma preocupação. A falta de vidro no mercado tem atrasado entregas e encurtado o estoque de long necks nos bares. O mesmo acontece com bebidas de valor mais alto em restaurantes, como o vinho e destilados.
Procuradas pelo g1, as principais fabricantes de cerveja afastam a possibilidade de desabastecimento. Mas o temor dos empreendedores do setor é que o movimento mais intenso cause uma escassez mais severa e prejudique o potencial de ganhos.
De acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), o verão aumenta o faturamento em cerca de 30% nos estabelecimentos de cidades turísticas. Em municípios menores, a quantia chega a dobrar. Nas demais localidades, os empresários costumam ao menos contar com a maior disposição do cliente a sair de casa em dias quentes.
Empresários ouvidos pela reportagem relatam dificuldades com a falta de vidro no mercado há pelo menos um ano, mas as vendas ainda mais fracas que o potencial instalado permitiram que se improvisasse soluções em caso de emergência.
Humberto Munhoz, sócio de bares como O Pasquim e Vero Coquetelaria, em São Paulo, conta que o problema se espalha da cerveja para as bebidas destiladas, chegando até às necessidades de construção.
Com uma unidade do grupo sendo erguida na zona norte da cidade, o empresário destaca que, além da demora na entrega dos serviços de vidraçaria, sentiu o peso da alta de preços da matéria-prima. Mas a cerveja é o assunto mais sério: as long necks chegam a corresponder a 25% do faturamento médio mensal do grupo. Qualquer imprevisto pede uma solução rápida.
“Acionamos contatos, ligamos para novos distribuidores e até vamos ao supermercado para não faltar. Uma batata dá para substituir, mas você perde clientes sem a cerveja”, diz o empresário.
Thiago Hyashida, do restaurante Mirai, em Ribeirão Preto, conta que, nas situações mais dramáticas do estoque de bebidas, acaba substituindo os produtos do cardápio por fabricantes diferentes ou opções similares que estejam disponíveis.
“Usamos outras marcas ou latas. Tentamos não deixar o cliente sem opção”, afirma.
Crise antiga
A falta de embalagens em vidro não é assunto novo. Segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Vidro (Abividro), o país passou por um longo período sem investimentos no ganho de produtividade e infraestrutura do setor, que culminou em escassez em 2020.
A paralisação causada pela pandemia do coronavírus nos mais diversos setores produtivos reduziu o número de pedidos. Quando houve retomada, as encomendas se acumularam com uma safra histórica de vinhos que o país produziu no ano passado.
Na equação há ainda outro fator importante. Sem o bar de confiança aberto, o brasileiro intensificou o consumo de bebidas alcoólicas em casa. Para as cervejarias, em específico, isso significa uma maior procura por long necks e uma redução do consumo de embalagens retornáveis.
“Era bola cantada desde o início de 2021 que não ia sobrar vidro. Quem não se antecipou terá produtos em falta”, conta Lucien Belmonte, superintendente da Abividro.
“Não é uma situação em que uma categoria inteira irá sumir das prateleiras. Mas um rótulo ou outro pode ser prejudicado”, completa. Um exemplo do que Belmonte diz e que já pode ser visto nas prateleiras de supermercados são embalagens coloridas de produtos que antes vinham em vidros transparentes — sintoma de improviso.
A boa notícia é que o problema tem data para melhorar. A má é que deve levar algum tempo. Em 2021, o setor anunciou duas novas fábricas de vidro no país e duas ampliações, que devem ajudar a suprir a cadeia nacional de cervejas, vinhos e demais recipientes envidraçados, como molhos, conservas e geleias.
A empresa francesa Verallia informou que fará investimento de 60 milhões de euros para dobrar a produção de sua fábrica em Jacutinga, Minas Gerais. A capacidade produtiva passa de 1,2 milhão para 2,5 milhões de garrafas ao dia, nas cores típicas de cerveja: âmbar e verde.
Além disso, outros 80 milhões de euros devem ser destinados pela Verallia a Campo Bom, no Rio Grande do Sul, para abastecer especialmente o mercado de vinhos, espumantes e outros destilados. Das 700 mil garrafas diárias, a expectativa é de salto para 1,3 milhão. Mas ambas devem operar com esses números a partir do segundo semestre de 2023.
“Esses investimentos no Brasil fazem parte do plano traçado para Verallia. Soma-se a isso o fato de que a demanda do mercado acelerou a decisão, o que mostra que nossa estratégia está no caminho certo”, afirma em nota Quintin Testa, diretor geral da Verallia na América do Sul.
A Owens-Illinois, líder mundial do mercado, também deve injetar US$ 180 milhões para duas novas fábricas no Brasil. Ambas devem operar no segundo semestre de 2023. Os locais ainda serão divulgados, mas a empresa adianta que ficarão no eixo Rio-SP e na região Sul.
“A operação local é uma das mais importantes para a companhia, visto que o país está entre os quatro principais mercados da empresa no mundo. Os investimentos globais da companhia certamente se refletem no Brasil”, diz em nota Hugo Ladeira, presidente da Owens Illinois para a América do Sul.
Potencial de melhora
A falta de vidro só não incomodou mais porque o potencial de atendimento dos bares e restaurantes não chegou ao patamar pré-pandemia. A Abrasel mostra que 35% das empresas cobertas tiveram faturamento menor em novembro que em outubro.
Além disso, a provedora de dados e consultoria Kantar afirma que a frequência do consumo de cerveja fora de casa no terceiro trimestre de 2021 ainda está 42% abaixo do que no mesmo período de 2019.
Os motivos são conhecidos. Por mais que a vacinação tenha avançado, a pandemia ainda restringe a saída de parte do público — e quem sai, fica menos tempo fora de casa.
Além disso, a inflação mais alta incomoda, e diminui o espaço no orçamento para o lazer. É o que a Kantar chama de “share of pocket”, ou seja, o espaço para a cerveja no dinheiro do mês.
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Essa equação faz com que o crescimento de 27% de penetração do mercado de cerveja — em outros termos, do número de bebedores — seja “anulado” pela redução de frequência em que se bebe. De acordo com a Kantar, um consumidor comum bebia 3,8 unidades de cerveja a cada saída. Em 2021, a média é de 2,1.
“São quase duas unidades que deixam de consumir. Há, sim, mais pessoas bebendo, os bares reabriram, mas um setor importante, que são as casas de festas e baladas, ainda estão bem defasados”, explica Hudson Romano, gerente de consumo fora do lar da Kantar.
Outro grande desfalque é o avanço do hábito de consumir bebida alcoólica em casa. Ao pedir um jantar por delivery, por exemplo, o consumidor pode beber o que comprou no mercado. Em outra hipótese, ele adiciona uma cerveja ao pedido. Ambas saem da conta do consumo fora de casa.
O que dizem as fabricantes?
O g1 procurou as duas principais empresas produtoras de cerveja do Brasil, para entender as dificuldades enfrentadas com a escassez de vidro no mercado.
Líder de mercado, a Ambev tem produção própria de garrafas e se abastece com uma gama de fornecedores nacionais e internacionais para que não haja escassez. Em nota, a empresa diz que acompanha a disponibilidade de vidro de seus fornecedores e tem estratégia comercial “proativa para enfrentar este desafio da indústria”.
Além do planejamento antecipado da produção e suporte de embalagens retornáveis, a Ambev conta com uma unidade de fabricação de garrafas, no Rio de Janeiro, que tem mais de 50% da matéria-prima vinda de reciclagem, “uma das maiores recicladoras de cacos de vidro na América Latina”.
Procurada pela reportagem, a Heineken não se manifestou.