São Paulo – Consideradas vitais para elucidar abordagens policiais que resultam em confrontos, as câmeras corporais da Polícia Militar (PM) paulista se tornaram fonte inesgotável de matéria-prima para uma atividade paralela de autopromoção da corporação.
Imagens gravadas pelos equipamentos acoplados nas fardas dos policiais abastecem vídeos de perseguições e prisões exibidos como reality show na conta oficial da PM no YouTube, a PMTV. São essas câmeras que o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que ia retirar durante a campanha e depois voltou atrás.
Ao estilo de séries e programas policialescos, o canal da PM divulga edições de ocorrências gravadas em tempo real, totalmente em primeiro plano, sob o ponto de vista do policial militar. Com frequência, destacam chamadas sensacionalistas como “Cai cai ladrão” e “Bote na mosca” para exaltar o triunfo dos policiais sobre os criminosos.
Reality policial
No vídeo abaixo, por exemplo, publicado na última terça-feira (17/1) com a chamada “Pega ladrão”, é possível acompanhar uma perseguição que acaba com a prisão de três suspeitos de roubarem uma farmácia em São Paulo.
Em outro, com o título “De terno para a tranca”, os policiais um uma viatura são avisados por uma vítima sobre um assalto que acabara de ocorrer nas proximidades.
O homem, com o rosto borrado, orienta os PMs onde está o assaltante, que vestia um terno. Os agentes alcançam o suspeito e realizam a prisão.
Em outro exemplo, a câmera portátil filma uma ocorrência na qual os policiais perseguem suspeitos de terem efetuado um roubo de carga. Um dos perseguidos finge ser um pedreiro para enganar os agentes.
Como boa parte dos vídeos, a gravação conta com edição, trilha sonora e recursos humorísticos. Neste caso, a edição faz uma referência ao programa de televisão “Show do Milhão”: o suspeito que está sendo rendido tenta “acertar” o nome de um suposto parceiro de trabalho, mas acaba errando.
Boa parte dos vídeos parece feita já com a intenção de ser publicada. Os policiais conversam com as câmeras e narram o que está acontecendo, como se fosse uma espécide de “reallity policial”.
Os agentes entrevistam vítimas e familiares, sempre na intenção de enaltecer o trabalho da corporação. O diálogo com abordados e detidos também são gravados e legendados, como no caso abaixo.
“Interesse institucional”
Com 885 mil inscritos e mais de 246 milhões de visualizações, o canal oficial no Youtube da PM existe desde 2012 e conta com mais de 1.300 vídeos publicados.
O objetivo, segundo o capitão Anderson Luiz da Silva, chefe da Agência de Notícias do Centro de Comunicação Social da Polícia Militar, “é mostrar o nosso trabalho diário, aproximar a população para que conheça mais a realidade policial”.
Silva afirma que o canal não é monetizado e que o setor de comunicação da corporação publica os vídeos por meio de critérios de “conveniência e oportunidade”. Ele explica que filmagens já são demandadas por órgãos externos, como equipes de TV, mas também por “interesse institucional”.
“A partir daí, em relação às imagens que vêm das equipes, a triagem é feita de forma técnica, sempre sob a premissa de preservar as pessoas, divulgando as boas ações, resolução de incidentes críticos, atuação em catástrofes e todo tipo de ocorrência meritória”, explica.
Os vídeos são separados por playlists de diferentes categorias. Na seção “Cop em Ação”, que conta até com vinheta própria, as publicações são especificamente de imagens gravadas pelas câmeras acopladas nos uniformes dos agentes, “mostrando o trabalho policial em sua realidade, totalmente em primeiro plano”.
Além dos vídeos de câmeras portáteis, a página também publica flagrantes de câmeras de segurança.
O vídeo mais assistido do canal até o momento, com quase 43 milhões de visualizações, mostra um flagrante de dois homens tentando roubar um carro de uma mulher no bairro do Sacomã, na zona sul de São Paulo. A vítima chega a entrar em luta corporal com um dos assaltantes, pouco antes de uma viatura aparecer e prender a dupla.
Além de ocorrências de natureza eminentemente policial, o canal também posta ações em que equipes realizam salvamento de bebês e até mesmo partos, como no vídeo abaixo.
O canal do Youtube da Polícia Militar de São Paulo também posta vídeos de orientação para quem tem interesse em prestar os concursos para ingressar na corporação, além de dicas de segurança, peças institucionais e conteúdos sobre a história da PM.
Espetacularização
Para o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em Segurança Pública, Rafael Alcadipani, esse modelo de comunicação adotado pela PM de São Paulo é uma “espetacularização” da atividade policial e pode colocar policiais em risco.
“A comunicação deveria ser mais sóbria, mais simples, para informar a população. Esse tipo de comunicação não informa muita coisa para a população, inclusive até gera um pouco de medo, dependendo do vídeo, mostrando a realidade dessa maneira, o polical como herói. Reforça estereótipos culturais de polícia muito negativos, que termina por colocar policiais em risco”, afirma Alcadipani.
Os vídeos preservam o rosto de suspeitos, vítimas e testemunhas. Em muitos casos, os rostos dos policiais também são borrados, mas em outros não, o que pode possibilitar a identificação dos agentes envolvidos.
Alcadipani também critica o fato de o modelo exigir efetivos de policiais para atuar na alimentação do canal. “Toma estrutura. Quantos policiais estão lotados na comunicação social para fazer esse tipo de trabalho, que são retirados das ruas, que não estão efetivamente no seu trabalho, que deve ser o patrulhamento especializado”, afirma.
A Polícia Militar informa que o canal PMTV é de responsabilidade da Divisão de Propaganda e Publicidade do Centro de Comunicação Social da PM.
“Existem policiais militares que fazem a coleta e difusão de conteúdos audiovisuais no canal PMTV, e outros que fazem a difusão desses e outros conteúdos nas demais redes sociais, cada equipe com as respectivas capacitações técnicas para tal”, explica o capitão Anderson Luiz da Silva.
Questionada sobre quantos policiais atuam diretamente para manter o canal, a PM afirmou que “trata-se de uma informação estratégica com divulgação restrita”.
De acordo ainda com o setor de Comunicação Social da PM, o canal vem crescendo em relação a métricas como novos seguidores, inserções, taxa de cliques, número de visualizações e postagens.
“Durante o ano de 2022, houve evolução em todos esses critérios, cada um com variações peculiares, o que demanda análise qualitativa mais aprofundada. Nota-se que o número de inserções, independente de qual seja o conteúdo, impulsiona organicamente os outros critérios”, afirma o chefe da Agência de Notícias da Polícia Militar.