“São 22 anos de impunidade, de abuso do tempo de espera. Esperar para que haja o julgamento de uma criança, todos esses anos, é ferir a nossa família todos os dias. Hoje, eu sinto como se não fosse uma vitória, porque quando passa muito tempo ela perde o efeito, mas eu quero que eles sejam julgados e que tenham pena máxima”.
O desabafo acima é de Marion Terra, mãe do jovem Lucas Terra, que foi estuprado e queimado vivo aos 14 anos. Os acusados do crime são três pastores da Igreja Universal do Reino de Deus. Um deles, Silvio Galiza, foi condenado em 2007 e os outros dois, Joel Miranda e Fernando Aparecido da Silva, começarão a ser julgados nesta terça-feira (25).
Em março de 2001, o adolescente flagrou uma relação sexual entre os pastores Joel Miranda e Fernando Aparecido da Silva, dentro do templo da Igreja Universal do Reino de Deus, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador.
Depois disso, Lucas foi estuprado, e colocado em uma caixa de madeira, onde foi queimado vivo em um terreno baldio na Avenida Vasco da Gama, com a ajuda do terceiro pastor, Silvio Galiza – que já teve condenação, pena reduzida e acabou solto por liberdade condicional em 2012.
“O meu filho não teve direito à defesa. Era uma criança de 14 anos, estava ali porque amava Cristo. Ele era um evangelizador, ele falava de Jesus todos os dias. Ele dizia: ‘mãe, esse bairro aqui da Santa Cruz é um poço de almas, de vidas para eu trazer para Cristo’”, disse Marion.
Pai morreu sem ver julgamento
“É o momento de fechar esse ciclo, e de poder fazer aquilo que o Carlos não pode fazer. O Carlos acabou jogando a toalha, e adoeceu nessa caminhada. Eu lamento por ele, meu companheiro, não estar aqui”.
O Carlos a quem Marion se refere era o pai de Lucas e então companheiro dela. José Carlos Terra morreu em fevereiro de 2019, no Hospital Geral Ernesto Simões Filho, após ter uma parada respiratória decorrente de uma cirrose hepática, diagnosticada um ano antes.
Por muitos anos, Carlos foi o símbolo da luta da família na cobrança da marcação do júri dos pastores. Ele fez vários protestos e chegou a acampar na frente do Fórum Ruy Barbosa, em 2012, para cobrar celeridade da Justiça no julgamento do crime.
“Toda nossa caminhada foi feita um amparando outro. Hoje a me sinto sozinha aqui, mesmo com meu filho [irmão de Lucas]. A companhia dele, que nunca desistiu de lutar – ele sempre acreditou, dizia para mim: ‘Marion, mesmo que demore, mesmo que seja até o último dia da minha vida, nós vamos lutar para que esses homens sentem no banco dos réus’”.
“Então, o que eu quero hoje é que haja uma pena justa, uma pena máxima. Que Fernando Aparecido da Silva e o pastor Joel Miranda sejam julgados pela sociedade baiana”.
Marion também chamou a atenção para o fato de que o crime foi cometido dentro da igreja evangélica, envolvendo outros três templos.
“Não foi um crime nas ruas de Salvador. Envolve três templos da Igreja Universal: Pituba, Rio Vermelho e Santa Cruz. Como podem esses homens acharem que, em 22 anos, eles vão tirar o direito meu de julgamento? Acabou para eles. Eu tenho certeza que eles saem daqui condenados. Condenados pela sociedade baiana, que não vai deixá-los impunes”.
“Eu estou aqui sozinha, mas eu me sinto amparada pela sociedade baiana, por cada pai, cada mãe. Para que eles nunca mais tenham a chance de violentar, de queimar vivo, como eles fizeram com meu filho”.
Por meio de nota, a Igreja Universal do Reino de Deus informou que “está completamente convicta quanto à inocência de Fernando Aparecido da Silva e Joel Miranda”, que seguem atuando como pastores nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Julgamento
O júri começou nesta manhã no Fórum Ruy Barbosa, e a previsão é de que será concluído na sexta-feira (28). Joel Miranda e Fernando Aparecido da Silva serão julgados pelos crimes de homicídio triplamente qualificado e ocultação de cadáver.
Os três agravantes para o homicídio são: o motivo torpe, o emprego do meio cruel e a impossibilidade de defesa da vítima. A defesa dos pastores disse, em nota, estar convicta da inocência deles, e que não há provas ou indícios contra os dois pastores, Joel Miranda e Fernando Aparecido.
O Ministério Público da Bahia (MP-BA), responsável por oferecer a denúncia à Justiça, não informou se eles também irão a júri pelo abuso sexual. Na época, o Departamento de Polícia Técnica (DPT) não constatou o estupro nos exames de necropsia.
Um dos advogados da família de Lucas Terra, Ricardo Sampaio, disse que a acusação tem provas de que o estupro foi cometido e vai apresentá-las durante o julgamento.
“A gente vai criar um certo resguardo, porque é a tese da acusação. A gente não vai adentrar, nesse momento. Uma coisa eu posso dizer: existem provas suficientes de que eles praticaram o crime, sejam elas testemunhais ou de outras naturezas.
Os réus deste júri:
👉 Joel Miranda: na época do crime, Joel era pastor da Igreja Universal no Rio Vermelho – onde o estupro ocorreu. Após o crime, ele se mudou para o Rio de Janeiro, onde até 2022 comandava uma igreja.
👉 Fernando Aparecido da Silva: em 2001, ele trabalhava no Templo da Pituba. Após o crime, ele passou a comandar uma igreja em Minas Gerais.
Histórico
👉 O pastor Silvio Galiza foi o primeiro a ser identificado pela polícia, por participação no crime. Ele foi apontado como o principal autor da morte de Lucas Terra. Em 2004, ele foi condenado a 18 anos de prisão e cumpriu cerca de sete anos de regime fechado. Em 2012, ele ganhou liberdade condicional.
👉 Em 2007, Silvio denunciou os pastores Joel Miranda e Fernando Aparecido da Silva por envolvimento no crime. Ele também confirmou que o flagrante da relação sexual entre Joel e Fernando foi a motivação do crime.
👉 Em 2008, o pastor Fernando Aparecido da Silva chegou a ser preso, mas em poucos meses, passou a responder o processo em liberdade.
👉 Em novembro de 2013, a Justiça inocentou Joel e Fernando. A família de Lucas recorreu e, em setembro de 2015, os desembargadores do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) decidiram, por unanimidade, que os religiosos fossem à júri popular, decisão confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
👉 Em abril de 2017, o STJ negou recurso especial para os acusados, que pediram a suspensão do júri popular.
👉 Em 2018, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, anulou, por falta de provas, o processo que envolve a participação do bispo Fernando Aparecido da Silva na morte de Lucas.
👉 Em novembro de 2020, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu que os pastores vão a júri popular.
Nota da Igreja Universal na íntegra
“A Igreja Universal do Reino de Deus esclarece que está completamente convicta quanto à inocência de Fernando Aparecido da Silva e Joel Miranda, que são Pastores da Universal, estando um em Minas Gerais, e o outro no Rio de Janeiro.
Quem conhece o trabalho da Igreja sabe que ela exige de todos os membros de seu corpo eclesiástico um comportamento irretocável, para que possam exercer a função missionária a eles confiada, como um verdadeiro exemplo de conduta para a comunidade onde atuam. Afastando, assim, qualquer um que tenha um comportamento contrário à fé cristã e do comportamento requerido de bispos e pastores. Contudo, em relação aos dois – ambos com quase 32 anos de ministério –, jamais foi encontrado, até aqui, comportamentos, provas ou indícios que os coloquem na cena deste crime tão brutal e lamentável.
Posto isto, a Universal reforça que continua acreditando na Justiça brasileira, e tem a convicção de que será restabelecida a justa decisão à época da Juíza de 1ª instância, de não os levarem a júri popular, por absoluta ausência de provas contra os mesmos.
Nossas orações – pelos familiares da vítima –, e pelos pastores, que, juntamente de seus familiares, têm sido submetidos a uma grave, descabida e injusta pena, em uma campanha midiática que já dura há anos. Os Bispos, pastores e milhões de simpatizantes da Universal que estão entre as maiores vítimas de preconceito religioso no Brasil, sentem também essa dor”.