Desde a criação da Constituição de 1988, o Brasil espera por uma formulação sobre a licença-paternidade. Há 35 anos, a Carta Magna estabeleceu o benefício como um direito dos trabalhadores e determinou que, até que o Legislativo elaborasse uma regulamentação sobre o assunto, o prazo geral da licença-paternidade seria de cinco dias. Até hoje, isto não foi feito. E, por outro lado, a legislação garante que a licença-maternidade seja de 120 dias.
Nesta semana, um pedido de vista da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, suspendeu o julgamento da ação que discute se há omissão do Congresso em elaborar uma lei que vai regulamentar a licença-paternidade para trabalhadores.
O caso estava em análise no plenário virtual desde 30 junho e levantou esperanças em grupos defensores da equiparação do benefício entre homens e mulheres. A espera, no entanto, continua, uma vez que ainda não há data para a ação voltar à pauta.
Em paralelo, em abril deste ano, a Câmara dos Deputados criou um grupo de trabalho formado por parlamentares de diferentes partidos, entidades da sociedade civil organizada, representantes do empresariado e representantes de órgãos públicos para debater o assunto e elaborar uma proposta para tramitação legislativa.
“O que a gente defende é que já passou do momento de se debater a fundo a questão da desigualdade entre a licença-maternidade e a licença-paternidade no Brasil”, afirma Ana Claudia Oliveira, coordenadora técnica do GT.
Para entender as perspectivas da extensão do prazo da licença-paternidade no Brasil e discutir os impactos socioeconômicos na desigualdade do benefício, o g1 conversou com Ana Claudia Oliveira, também assessora legislativa da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, e com o Marcos Piangers, autor do livro “O papai é pop” (Belas-Letras), palestrante, produtor de conteúdo e ativista da causa de conexões familiares.
Licença-paternidade no Brasil
Pela legislação brasileira, trabalhadores com carteira assinada e servidores públicos federais têm direito a uma licença de apenas cinco dias após o nascimento de um filho. Esse direito se estende a casos de adoção.
Fora isso, a licença pode ser estendida no caso de trabalhadores de empresas adeptas ao Programa Empresa Cidadã, que amplia o benefício para 180 dias para as mães e para 20 dias para os pais. A depender da empresa, a conquista da prorrogação está sujeita à comprovação da participação em algum programa ou atividade de orientação sobre paternidade responsável.
Pai solo
No caso de famílias monoparentais, com apenas um pai, a extensão da licença-paternidade depende de uma ação judicial – porque, atualmente, não existem meios administrativos para a concessão do benefício.
Apesar disso, em maio de 2022 a discussão teve um dos seus raros avanços. Na ocasião, o STF decidiu, por unanimidade, que servidores públicos que sejam pais solo, sem a presença da mãe, têm direito a licença de 180 dias. A decisão deverá servir para embasar as demais instâncias do Judiciário em casos semelhantes.
Proposta de extensão do prazo
O grupo de trabalho criado neste ano na Câmara dos Deputados tem como objetivo reunir diferentes perspectivas e demandas em relação à licença-paternidade no Brasil. Ana Claudia Oliveira explica que a intenção ao reunir um grupo diverso é poder elaborar e criar uma proposta que seja a mais factível possível para ser apresentada ao Legislativo, com a esperança de que se consiga avançar com o debate “o mais rápido possível”.
“O objetivo da força de trabalho é encontrar caminhos, que isso seja debatido a sério, e reflita a sociedade que a gente tem hoje e, até mesmo, que impulsione a sociedade”, diz ela.
Já foram realizadas quatros reuniões com o GT. Desde então, discutiram-se prazos de licenças-paternidade que vão desde 20 dias a seis meses.
A coordenadora técnica explica que uma suposta proposta de defesa da equiparação do benefício entre homens e mulheres seria na linha de licença parental, ou seja, que possa ser dividida de acordo com a configuração e o desejo de cada família. Mas o grupo ainda não tomou uma decisão.
“A equiparação é um sonho, é uma coisa que temos no horizonte, que consideramos a ideal. Mas imaginamos que seja de forma gradativa. Não vamos conseguir, de cara, criar uma legislação no âmbito da equiparação”, afirma Ana Claudia.
A assessora legislativa pondera, entretanto, que aumentar apenas o número de dias não será suficiente. Ela acredita que o projeto deve contemplar uma mobilização de conscientização social, com campanhas e divulgação de programas de governo que ajudem no engajamento da população, principalmente por parte dos homens.
O grupo entende que o cenário pode ser de um aumento gradual do benefício, como aconteceu na Espanha, que agora permite uma licença de 16 semanas tanto para pais quanto para mães.
Desigualdade e impactos socioeconômicos
Tanto Ana Claudia Oliveira quanto Marcos Piangers entendem que aumentar a licença-paternidade é um primeiro passo para reduzir desigualdades entre homens e mulheres, com possível transformação sócio-cultural.
“O cuidado com crianças é uma responsabilidade tanto de pais quanto de mães”, diz Piangers.
Para ele e para Ana Claudia, está claro, tanto empiricamente quanto a partir de estudos e estatísticas, que as mulheres são tidas como as principais responsáveis no trabalho de cuidado de filhos. Esse cenário, afirmam, traz consequências também para o mercado de trabalho, que ainda é mais competitivo e paga valores menores a mulheres.
“Isso faz com que se tenha um gap salarial entre homens e mulheres, e as últimas pesquisas científicas mostram que o grande motivo é a maternidade, a percepção de que o homem não é um cuidador. Então, ele pode aceitar promoções e viagens, ou ele pode chegar mais tarde [em casa], porque aceita participar de grupos de trabalho, reuniões e assumir projetos importantes dentro da empresa”, argumenta Piangers.
Citando a quantidade de mulheres no mercado de trabalho, a sobrecarga feminina e a disparidade na divisão de cuidados dos filhos entre mães e pais, Ana Claudia insiste que “é inadmissível que esse prazo [da licença-paternidade] não seja aumentado”.
Marcos Piangers lista dados que exemplificam a desigualdade de gênero no Brasil:
- Existem 11,5 milhões de mãe solo.
- Quase 15% dos lares brasileiros são chefiados por mães solo.
- Em 2022, mais de 100 mil crianças foram registradas sem o nome do pai.
James Hackman, investimento na primeira infância como fortalecimento da economia
Para Marcos Piangers, a tese do Nobel de Economia James Heckman é prova de que “o argumento econômico de que a economia brasileira não teria condição de arcar com o custo de uma licença-paternidade de mais de cinco dias” não se sustenta. “Cai por terra.”
Heckman concluiu que o investimento na primeira infância é uma estratégia eficaz para o crescimento econômico. Ele assegura que a maneira mais eficiente de diminuir a desigualdade e formar adultos que alcancem renda superior à de seus pais é investindo em crianças com idade de zero a seis anos.
“É o que ele chama de pré-distribuição de renda. Uma distribuição de renda que acontece antes de a criança nascer: em um bom pré-natal, em uma boa gravidez, em um bom parto, em um bom acompanhamento dessa criança e em um bom cuidado dessa criança nos primeiros dias, meses e anos”, esclarece o Piangers.
Ele diz que uma criança que cresce em um núcleo familiar fortalecido, com conexões e apoio, terá um desempenho melhor como estudante e profissional. “O Estado não vai gastar esse dinheiro com uma necessidade de bolsas e auxílios, visto que já investiu antes”, analisa.
Vínculo entre pais e filhos
Além de defenderem a extensão de dias da licença-paternidade, Ana Claudia Oliveira e Marcos Piangers citar os ganhos que isso pode acarretar para a relação entre pais e filhos.
“Tem estudo que mostra que essa conexão nos primeiros meses de vida é fundamental para que o homem se engaje nessa atividade de cuidado”, comenta a assessora.
Como pai de duas meninas, Piangers cita oq ue considera óbvio: o homem tem plena capacidade e potencial para ser cuidador. Ele também relaciona outros ganhos que os pais têm ao assumirem ter papel equivalente ao das mães em termos de responsabilidade.
“Esse homem, através da paternidade, pode se enxergar como cuidador mais sensível e menos violento. A gente sabe que os homens são responsáveis pela maioria dos homicídios, pela maioria das violências domésticas. E são a maioria da população carcerária e a maioria da população de rua”, diz Piangers.
Em suas palestras e vídeos na internet, ele explora a profundidade nessa relação. Em sua percepção, a paternidade também dá ao homem a chance de se enxergar “como um ser que não é violento, que não é agressivo e que tem a possibilidade expressar outras emoções além da raiva que, muitas vezes, é o único idioma masculino”.