O adolescente paulistano Alexander Martinez, de 15 anos, tinha uma expectativa de vida de apenas mais dois anos até que, em setembro deste ano, a medicina e a tecnologia reverteram as incertezas.
O jovem, que nasceu com “metade do coração”, se tornou o primeiro paciente na América Latina a receber um ventrículo artificial, dispositivo auxiliar que pode ser usado para apoiar pacientes com insuficiência cardíaca, segundo o Instituto do Coração .
Alexander ficou internado desde fevereiro, quando saiu de casa, sentiu os pés inchados e foi parar no hospital. A alta do InCor depois da cirurgia delicada para o implante aconteceu três meses depois, em 5 de dezembro.
“Estou muito feliz, e a cirurgia está dando certo. Hoje estou em casa. Antes eu me sentia bem cansado. Hoje eu me sinto menos [cansado], agora posso andar. E mais para frente vou poder correr, fazer academia e achar uma namorada também”, disse ao g1.
— Foto: g1
O estudante nasceu com ventrículo único funcional, que é quando o coração não tem as duas câmaras de bombeamento (ventrículos) funcionando separadamente, como deveria. Com isso, precisou ser submetido a três cirurgias cardíacas.
Com passar dos anos, mesmo com esses três procedimentos que mantiveram Alexander vivo, a situação piorou para insuficiência cardíaca (quando o coração não consegue bombear a quantidade de sangue de que o corpo precisa) e hipoxemia (oxigenação sanguínea baixa), explicou o médico Luiz Fernando Caneo, um dos responsáveis pelo paciente.
No caso de Alexander, um transplante não era indicado devido à ausência de uma artéria pulmonar. Com isso, a equipe tinha duas opções: não fazer nada e oferecer conforto ao paciente, sabendo da piora iminente, ou fazer o procedimento, apesar do alto risco, mas com chance de melhorar a qualidade de vida dele.
“A artéria pulmonar esquerda [de Alexander] é totalmente fechada e o pulmão esquerdo, irrigado por vasos colaterais, apenas. Nesses casos, o transplante é contraindicado”, diz Caneo.
Entenda:
🫀Ventrículo único funcional: o coração não tem as duas câmaras de bombeamento (ventrículos) funcionando separadamente, como deveria. Além disso, pode ocorrer também atresia pulmonar com septo íntegro, quando o ventrículo direito, que bombeia sangue para os pulmões, não funciona ou é pequeno. A válvula que permite que o sangue passe do coração para os pulmões (válvula pulmonar) está fechada ou não se formou corretamente.
❤️🩹Ventrículo artificial: dispositivo auxiliar de ventrículo esquerdo que pode ser usado para apoiar pacientes com insuficiência cardíaca. É projetado para ajudar o coração a bombear sangue. Em pacientes com dois ventrículos funcionais, ele suporta o ventrículo esquerdo, ajudando-o a bombear sangue para o corpo. No entanto, o uso em pacientes com um único ventrículo é mais complexo.
O pai do estudante, Alessandro Martinez, lembra que as medicações no hospital estavam mantendo-o estável, mas a família teria de fazer escolhas.
“Passaram para a gente que ele estava bem, porém, a expectativa de vida era de dois, no máximo três anos. Fazia esse procedimento ou, num futuro próximo, ele ia ficar cada vez mais fraco, mais debilitado”, lembra.
O paciente também teria de passar pela “Operação de Fontan”.
🩸A cirurgia de Fontan desvia o sangue das veias cavas superior e inferior diretamente para os pulmões sem passar pelo coração, especifica o médico. O sangue oxigenado que retorna dos pulmões para o coração é bombeado para todo o corpo pelo único ventrículo funcionante. No caso de Alexander, o ventrículo único já estava enfraquecido.
Como foi o processo
Jovem de 15 anos que nasceu com ‘metade do coração’ ganha ventrículo artificial em SP — Foto: TV Globo
A equipe do InCor chegou a moldar uma peça com o formato do órgão do adolescente com uma impressora 3D e estudou o caso também em imagens em softwares com realidade virtual durante dois meses.
Depois, Caneo levou o coração de resina a um congresso nos Estados Unidos para discutir com outros profissionais sobre a cirurgia. O órgão de Alexander tem cerca de três vezes mais volume do que um coração “comum”.
“Como o coração é grande, a dúvida que a gente tinha era de onde ia colocar o dispositivo, a melhor posição, como ia ficar.”
Após o congresso, e como a família tinha decidido fazer a cirurgia, o procedimento de risco foi feito em setembro, e a alta aconteceu no começo deste mês.
Com o sucesso da cirurgia, o torcedor do São Paulo ganhou no dia da alta uma camisa do time com a assinatura dos atuais jogadores. O presente foi dado pela equipe médica, que fez uma mobilização para conseguir os autógrafos.
“Uma grande vitória. Vê-lo saindo do hospital e reabilitado para uma vida próxima do normal não tem preço. Estava condenado a ter uma vida horrível até a morte, e é muito gratificante. Eu acho que toda a equipe sentiu isso. O maior objetivo era mandá-lo para casa. Vai ter uma qualidade de vida muito boa”, comemora o médico.
Andar, correr e… namorar
O retorno para casa teve um churrasco de recepção e uma reforma na casa, segundo o pai Alessandro.
“Quando a gente viu que ele estava superbem e que estava iminente a saída dele do hospital, começamos a preparar tudo para recepcioná-lo. Tinha locais com mofo, tivemos de mudar um pouquinho a estrutura e, quando tivemos a notícia da alta, foi uma maravilha.”
Ainda segundo o pai, Alexander cursou o segundo ano do ensino médio a distância. Era ele quem pegava na escola as atividades para o filho as fazer no InCor enquanto recebia o tratamento médico. Foi um ano longe da convivência com os amigos
Luta judicial
O SUS não realiza o procedimento realizado em Alexander. A família tentou, então, via convênio médico, que negou a cirurgia. O caminho foi entrar na Justiça contra o plano de saúde já que a única alternativa era a tentativa de sobreviver com o dispositivo importado.
Em 10 de julho, a juíza da 1ª Vara Cível do Foro Regional I – Santana analisou o caso. Na decisão, a magistrada avaliou o pedido com urgência e considerou que a recusa do convênio em cobrir a cirurgia de implantação do dispositivo HeartMate3 era ilegal. E determinou multa diária de R$ 15 mil se a empresa não cumprisse a decisão.
O processo contava com o relatório médico que relatava “altíssimo risco para a hipótese de transplante cardíaco, por se tratar de paciente com cirurgia prévia, obstrução total na artéria pulmonar esquerda e disfunção ventricular do ventrículo único”.
“Seria caro para conseguir um advogado para entrar com esse processo. Coincidentemente, trocou o chefe do local onde eu trabalho, e ele é advogado. Ele soube da causa através do futebol. O Alexandre sempre acompanhava a gente no futebol, e esse meu chefe joga também. Quando soube do caso, ele falou: ‘Eu vou entrar com o processo e não vou cobrar nenhum real’. Conseguimos a autorização do convênio através da Justiça”, detalha o pai.
Ventrículo artificial antes do transplante
A primeira criança a usar um aparelho como o de Alexander no Brasil foi Guilherme Rossi. Em 2020, a história dele foi contada no “Fantástico”. Em 2019, o menino descobriu que tinha doença celíaca, uma doença autoimune desencadeada pela reação ao glúten.
Ele emagreceu dez quilos em um semestre e passou mal algumas vezes. Foram mais de 20 dias internado até que um raio-x revelou que o coração dele estava inchado. No caso dele, uma inflamação causada por um vírus também provocou uma falência severa no órgão.
Para Guilherme, a “máquina” foi temporária. Ele continuou na fila para o transplante e recebeu um novo coração em 2021. O menino ficou com o aparelho implantado por um ano e três meses. Durante o período, enfrentou uma infecção na área de entrada do cabo de alimentação da bomba e um AVC.
“O Heartmate salvou meu filho. E só posso achar maravilhoso que ele possa ter sido beneficiado com seu uso e graças às adaptações que foram feitas. No caso do Gui, foi a oportunidade de sobrevida suficiente para aguentar a espera da chegada de um novo coração, e que isso fosse possível fora do ambiente hospitalar”, contou a mãe do garoto, Tatiana Rossi.
Como funciona o aparelho
A Abbott, empresa fabricante do dispositivo, informou ao g1 que, no caso de Alexander, o procedimento foi coberto pelo plano de saúde, e a tecnologia ainda não está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS). Para ser disponibilizado no Brasil, o HeartMate 3 passou por certificações e aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Depois de implantado, o paciente é acompanhado pela equipe clínica de origem. É feita uma checagem dos parâmetros do dispositivo por meio de um monitor específico que fica no centro hospitalar. Quando o paciente recebe alta e vai para casa, ele leva consigo oito baterias íons de 14 volts que fornecem energia para o funcionamento do equipamento.
“Elas são sempre usadas aos pares e possuem uma durabilidade de até 17 horas. Quando necessário, são feitas trocas de baterias de acordo com suas validades”, explica o texto encaminhado ao g1.
Além disso, o paciente usa um controlador do sistema, que é um equipamento de interface do dispositivo. Este monitor tem uma bateria interna backup com capacidade de até 15 minutos de suporte além das 17 horas das baterias de 14 volts.
“Todo paciente que faz uso do sistema HeartMate recebe um treinamento para uso da tecnologia e passa por acompanhamento contínuo, tanto da equipe médica quanto da Abbott. Antes do procedimento, ele também tem a oportunidade de conhecer outras pessoas que já realizaram este procedimento e, com isso, podem compartilhar experiências.”
O que diz o Ministério da Saúde
“O Sistema Único de Saúde (SUS) oferta assistência integral e gratuita para pacientes com insuficiência cardíaca, incluindo ações de prevenção e controle, diagnóstico, oferta de medicamentos, tratamento e acompanhamento para um estilo de vida mais saudável.
Em 2023, o Ministério da Saúde destinou R$ 270 milhões para a atenção cardiovascular. O objetivo é viabilizar a ampliação da oferta de procedimentos cirúrgicos na área.
De acordo com o Sistema de Informação Hospitalar do Sistema Único de Saúde (SUS), em 2022, foram registradas 205.441 internações relacionadas à insuficiência cardíaca no SUS. Em 2023, até outubro, foram 174.500 internações (dados preliminares).”