Um grupo de advogados representantes do Instituto Padre Ticão encaminhou ao Ministério Público de São Paulo uma denúncia contra o vereador da capital Rubinho Nunes (União) pelo crime de abuso de autoridade. O parlamentar propôs uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o padre Júlio Lancellotti e ONGs que fazem trabalho social no Centro de São Paulo.
O documento foi recebido pelo Grupo Especial de Combate aos Crimes Raciais e de Intolerância, do MP-SP, que analisa o pedido e deve decidir se instaura um Procedimento Investigatório Criminal contra o parlamentar.
“A CPI proposta é violenta e serve apenas para silenciar quem tanto fez — e faz — por seres invisíveis na cidade de São Paulo”, destacou o advogado Eduardo Samoel Fonseca, um dos signatários da representação criminal.
“Uma CPI é um instrumento muito caro à sociedade democrática, não podendo seu uso ser indiscriminado e flutuar ao sabor das circunstâncias, destoando do interesse público”, diz o documento.
Ao g1, Rubinho disse que desconhece qualquer representação feita contra ele. “Caso tenha ocorrido, sei que não irá prosperar. A abertura da CPI é prerrogativa parlamentar e foi exercida no estrito rigor da lei. Isso é apenas mais uma tentativa de retaliação para blindar as ONGs e apenas mostra que há muito para ser investigado”, afirmou.
Investigação por abuso de autoridade
Para os denunciantes, o vereador escolheu Júlio Lancellotti como principal alvo da CPI para, em ano eleitoral, “criar conteúdo para manejar e atiçar as bases eleitorais neste coliseu contemporâneo que são as redes sociais, com seus recortes/edições e ‘lacrações'”.
O documento diz que a atuação de ONGs é passível de auditoria dos Tribunais de Contas Municipal e Estadual, sem a necessidade de instalação de uma comissão parlamentar de inquérito.
“A total falta de elementos desse tipo mostra o desvio de finalidade e confirma a falta de justa causa para a CPI”, diz o texto.
A partir desses elementos, os advogados justificam o pedido de investigação a partir dos artigos 2º e 30 da Lei dos Crimes de Abuso de Autoridade:
- Art. 2º: diz que qualquer agente público pode ser sujeito ativo do crime de abuso de autoridade, inclusive membros do Poder Legislativo;
- Art. 30: criminaliza o agente público que, de alguma forma, persegue civil, administrativa ou criminalmente alguém “sem justa causa fundamentada” ou “contra quem sabe inocente”.
Para o vereador Adriano Santos (PSB), há um viés eleitoral na proposta de CPI.
“É uma tentativa dele de se promover em cima do discurso de ódio contra o padre Júlio e manter a base política extremista dele ativa nas redes sociais. Uma vez que o MBL se afastou do bolsonarismo, agora eles estão à procura de alguém para tentar conseguir se manter na Câmara Municipal na eleição de outubro”, disse.
Motivação de Rubinho
Rubinho diz que a comissão tem a “finalidade de investigar as ONGs que fornecem alimentos, utensílios para uso de substâncias ilícitas e tratamento aos grupos de usuários que frequentam a região da Cracolândia”.
Segundo o vereador, a atuação das ONGs não está isenta de fiscalização, “sendo necessária a criação de uma CPI, até porque, algumas delas frequentemente recebem financiamento público para realizar suas atividades”.
Apesar de o documento não mencionar nominalmente Júlio Lancellotti, Rubinho utilizou suas redes sociais para atacar o padre:
“Vou arrastar ele para cá em coercitiva, nem que seja algemado. Eu vou fazer um raio-X, vou fazer um exame nas entranhas desse sujeito, todo mundo vai saber o que tem por trás do Lancellotti”, disse o vereador Rubinho Nunes.
Veja perguntas e respostas sobre a CPI
Quem é Julio Lancellotti?
Júlio Renato Lancellotti, de 75 anos, é um padre que coordena a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo – organização de amparo às pessoas em situação de rua.
Ele é pároco na Paróquia São Miguel Arcanjo, na Mooca, Zona Leste de São Paulo. Diariamente, distribui alimentos, peças de vestuário e itens de higiene pessoal para pessoas em situação de rua.
Nas redes sociais, apresenta-se como “defensor dos direitos humanos”. Em 2021, ele quebrou a marretadas blocos de paralelepípedos instalados em viadutos em São Paulo, cujo objetivo era impedir pessoas em situação de rua de se instalarem nos locais.
Em 2023, virou nome de lei: o governo federal regulamentou a Lei Padre Júlio Lancellotti, que proíbe a aporofobia (medo e rejeição aos pobres) por meio da “arquitetura hostil”.
O que se sabe sobre a CPI contra ONGs?
Um pedido para instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigue ONGs que fazem trabalho social na região da Cracolândia — especialmente o Padre Júlio Lancellotti e o movimento A Craco Resiste — foi protocolado na Câmara Municipal em 6 de dezembro de 2023 pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil).
O requerimento de Rubinho é um dos 45 pedidos de CPIs feitos pelos vereadores nesta legislatura. Ele colheu assinaturas de ao menos 23 parlamentares favoráveis à proposta.
Para a CPI “furar” a fila das demais proposições, é preciso haver um acordo entre todos os parlamentares da Casa. No entanto, vereadores contrários ao pedido negaram a existência de algum acordo para facilitar a votação da proposta.
Qual o objetivo da CPI?
Rubinho diz que a comissão tem a “finalidade de investigar as Organizações Não Governamentais (ONGs) que fornecem alimentos, utensílios para uso de substâncias ilícitas e tratamento aos grupos de usuários que frequentam a região da Cracolândia”.
Segundo o vereador, “a atuação dessas ONGs não está isenta de fiscalização, sendo necessária a criação de uma CPI, até porque, algumas delas frequentemente recebem financiamento público para realizar suas atividades”.
“Uma CPI pode avaliar a eficácia dos programas oferecidos pelas ONGs, determinando se elas estão alcançando os resultados desejados”, diz o requerimento, que foi assinado por ao menos 23 vereadores, do total de 55.
Apesar de o documento não mencionar nominalmente Júlio Lancellotti, Rubinho utilizou suas redes sociais para atacar o padre. “Vou arrastar ele para cá em coercitiva, nem que seja algemado”, afirmou o vereador. “Eu vou fazer um raio-X, vou fazer um exame nas entranhas desse sujeito, todo mundo vai saber o que tem por trás do Lancellotti”, disse.
A CPI já existe?
Não. Para que uma CPI seja instaurada, três requisitos devem ser cumpridos:
- Para ser protocolado, o requerimento de CPI deve ser assinado por, no mínimo, um terço dos vereadores (19 parlamentares, no caso da capital, que tem 55 vereadores);
- Para a comissão poder “furar a fila” das demais proposições, é preciso haver um acordo entre todos os parlamentares da Casa;
- Na sequência, o requerimento deve passar por duas votações no plenário da Câmara e conseguir ao menos 28 votos favoráveis (mais de 50% dos vereadores)
Apesar de o requerimento de Rubinho ter sido assinado por 23 parlamentares, ainda não alcançou as últimas duas etapas do processo.
Quem são os vereadores que assinaram o pedido de CPI?
Foram ao menos 23 assinaturas no documento registrados no site da Câmara Municipal. Mas o g1 identificou que o nome do vereador Xexéu Tripoli (PSDB) aparece duas vezes no documento. Além disso, oito vereadores retiram apoio à CPI. Veja os nomes:
- Rubinho Nunes (União Brasil)
- Adilson Amadeu (União Brasil)
- Sandra Tadeu (União Brasil) – retirou apoio
- Thammy Miranda (PL) – retirou apoio
- Fernando Holiday (PL)
- Isac Felix (PL)
- Xexéu Tripoli (PSDB) – retirou apoio
- Fábio Riva (PSDB)
- João Jorge (PSDB) – retirou apoio
- Gilson Barreto (PSDB)
- Beto do Social (PSDB) – retirou apoio
- Rute Costa (PSDB)
- Bombeiro Major Palumbo (PP)
- Sidney Cruz (Solidariedade) – retirou apoio
- Rodrigo Goulart (PSD)
- Atílio Francisco (Republicanos)
- Dr. Milton Ferreira (Podemos) – retirou apoio
- Jorge Wilson Filho (Republicanos)
- Sansão Pereira (Republicanos)
- Dr. Nunes Peixeiro (MDB) – retirou apoio
- Marlon Luz (MDB)
- Rodrigo Goulart (PSD)
- Não identificado
- Não identificado
- Não identificado
É possível retirar a assinatura da CPI?
Não. Apesar de retirarem o apoio, os vereadores não conseguem retirar a assinatura.
O que Lancellotti disse sobre a iniciativa?
O padre Júlio Lancellotti disse, nesta quinta-feira (4), que “criminalizar trabalho com população de rua e dependência química é tentar tirar o foco da questão da Cracolândia”.
Em entrevista à GloboNews, o coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo ironizou a tentativa do vereador Rubinho Nunes (União Brasil) de investigá-lo pelo trabalho social na distribuição de comida e roupas para as pessoas famintas da região central da cidade.
“A gente tem que entender o problema na complexidade que ele tem. Quando dizem que a Cracolândia existe por causa de mim, eu sempre penso: ‘se eu morrer hoje ou amanhã, a Cracolândia vai desaparecer?’. Se eu sou a causa, é tão fácil de resolver. É só eu morrer que acabou a Cracolândia. Não tem mais…”, declarou.
“Criminalizar algumas pessoas sempre é uma forma de não enfrentar o problema do tamanho que ele é. A gente criminaliza, ofende e trata de uma forma negativa a pessoa, a gente tira o foco da questão. A questão que nós temos que enfrentar é como lidar com a dependência química, com as cenas de uso, com essa questão que é tão grave no Centro de São Paulo e de outras cidades”, completou.
“Essa criminalização é uma forma de não enfrentar com clareza e profundidade a questão que está em foco na Cracolândia. (…) A gente não pode perder o contexto que São Paulo é a vitrine do mercado imobiliário. É a vitrine de especulação imobiliária. E a especulação imobiliária tem um inimigo número 1, que são as pessoas em situação de rua. Uma população que aumentou exponencialmente em São Paulo”, apontou.
O que disse o presidente da Câmara de SP?
Ao blog da Andréia Sadi no g1, o presidente da Câmara Municipal de SP, vereador Milton Leite (União Brasil-SP), disse não ver perseguição na proposta de criação de uma CPI. Ele afirmou que vai aguardar o retorno do recesso na Câmara em fevereiro para se reunir com o Colégio de Líderes, quando será debatido se haverá o prosseguimento da instalação da comissão.
Segundo o presidente da Casa, do que tomou conhecimento até o momento, “não há viés político” na proposta do vereador Rubinho Nunes (União Brasil). “Se há fatos, não importa quem seja investigado. A investigação é como outra qualquer”, disse Milton.
O que diz o prefeito de SP?
Segundo interlocutores de Ricardo Nunes (MDB), o prefeito ficou sabendo pela imprensa sobre a proposta da CPI. Ligou para o Padre Júlio na quarta à noite e para o arcebispo Dom Odilo na manhã desta quinta (4). Nas duas conversas, a ideia era tranquilizá-los.
Nas conversas, Nunes também disse que a Câmara só volta do recesso em fevereiro e que até lá será feito um trabalho com os vereadores da base. O entendimento, no entanto, é que isso não é uma questão da Prefeitura, mas gerou um desgaste porque em vez de PT e PSOL mirarem o União Brasil e MBL, estão usando como combustível para ataques contra o Ricardo Nunes.
“Não estou entendendo a repercussão, pois não tem nada de concreto. A Câmara está em recesso. Todas as decisões lá são colegiadas, um vereador sozinho não pode tomar decisões”, disse.
“Não entendi a repercussão porque não tem o nome do Padre Júlio no documento, estão em recesso, não foi aprovada a CPI. Fui vereador e é comum protocolarem várias CPI e sequer é apreciada. Nesse momento não tem nada de concreto. Se tivesse sido aprovada, tivesse aprovado uma convocação. Mas não tem nada. Enfim, só por esse motivo objetivo que achei estranho”, completou.