Um técnico de enfermagem de 51 anos é acusado por um médico de fotografar uma paciente, uma agente de saúde, sem roupas durante um procedimento no Hospital Federal Cardoso Fontes, em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
O caso foi em 25 de julho e é investigado pela Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) de Jacarepaguá. O g1 localizou a paciente, que deu um relato de como soube do episódio e de como está se sentindo hoje (veja acima).
A denúncia foi feita pelo urologista que estava na sala de cirurgia. O especialista afirma ter visto o técnico com o celular na mão fotografando as partes íntimas da paciente.
O suspeito nega as acusações. Em depoimento à polícia, ele afirmou que pegou o telefone celular para “procurar sinal” e “já estava em ligação” quando foi acusado pelo médico. Ao g1, disse que estava com o aplicativo de foto para mandar uma selfie para enviar à esposa (veja mais sobre o que diz o suspeito no fim da reportagem).
Após o procedimento, o médico procurou a direção da unidade para denunciar o episódio. A vítima foi comunicada do fato 8 dias após a alta médica.
A paciente estava anestesiada antes de uma pieloplastia – um procedimento no canal que liga os rins à bexiga.
O g1 teve acesso a depoimentos e documentos do caso e ao relato do médico que denunciou o fato. O especialista diz que a mulher “encontrava-se anestesiada, em posição de litomia [com as pernas para o alto] para uma abordagem cirúrgica”.
O urologista contou que havia saído da sala de cirurgia e, ao voltar, viu, “atrás do vidro da porta, o técnico com o aparelho de celular na mão e a câmera do celular ligada fotografando a parte íntima da paciente que se encontrava exposta”.
O médico afirmou que o “evento foi visualizado com bastante clareza” e que, em seguida, perguntou ao técnico “se ele estava fotografando a paciente”. Segundo o urologista, o técnico “negou de forma enérgica”.
Ele afirmou ainda que, mesmo após ter confrontado o técnico de enfermagem, ele voltou a “disparar a foto da câmera outra vez”.
O urologista afirmou que finalizou a cirurgia e, após o procedimento, foi até seu chefe, relatou o fato e seguiu para a direção do hospital. Lá, registrou um relato de ocorrência e comunicou à chefia da enfermagem. No dia seguinte, 26 de agosto, a paciente recebeu alta médica e foi embora.
Três dias após o relato do médico, a Coordenação de Enfermagem do local fez uma comunicação interna para a Divisão de Enfermagem “para providências cabíveis” contra o suspeito.
No documento, a chefe destaca: “no ápice do fato, não tivemos a oportunidade de ver o celular do funcionário, pois ficamos perplexos com a atitude”.
No relatório, a coordenadora da enfermagem escreveu que estava indignada com o fato e escreveu que era “de bom tom para o serviço e a instituição não ter um profissional deste” trabalhando no Cardoso Fontes.
Após o relatório, o g1 apurou que houve uma reunião entre chefes do hospital, que decidiram contar para a vítima o que havia acontecido. A chefia, no entanto, não suspendeu o homem das suas atividades – e ele segue trabalhando.
‘Meu chão caiu’, diz vítima
O g1 localizou e entrevistou a vítima. Muito abalada, ela relatou que se tratava no hospital havia anos – por conta de uma má formação genética – e aquela era a 3ª cirurgia que fazia.
A agente de saúde afirma que não entende o porquê de o homem ter feito as fotos e de não ter sido demitido. Também critica a demora da direção da unidade em a avisar.
“Eu já tinha feito procedimentos lá e nunca tive problemas. Continuamos o acompanhamento e precisei retornar para fazer esse novo procedimento. Fui ao centro cirúrgico, tudo normal, correndo dentro do esperado e, chegando no centro cirúrgico, eles me falaram que eu iria dormir o processo inteiro. Todo o procedimento, até então, normal. Dormi o processo todo e no outro dia eu acordei”, relembra a mulher.
No dia seguinte, nenhum comentário sobre o ocorrido.
Paciente conta como soube que técnico de enfermagem tinha feito imagens dela — Foto: Stephanie Rodrigues/g1
“Passei pela vistoria médica de manhã, onde ele me relatou que estava tudo bem, que tinha sido tudo dentro do normal. Não me passaram nenhum tipo de informação [sobre o caso]. Recebi alta e fui embora. Oito dias depois, de manhã, eu recebo uma ligação pedindo para ir ao hospital. Eu, meio atordoada e ainda não entendendo o porquê, pensei que fosse algo sério que estava acontecendo e que eu poderia estar em risco. Fui lá com a minha filha. Chegando lá fui recepcionada por várias pessoas, dentre elas médicas, enfermeiras, onde me foi passado o caso.”
A partir daí, a paciente conta que sua vida virou de cabeça para baixo. Mãe de quatro filhos e avó de uma neta de 2 anos, ela diz que só chora e só consegue dormir à base de remédios.
“Meu chão se abriu totalmente. [E eu fiquei] sem entender o porquê de aquilo estar acontecendo. Falaram para mim que um funcionário, durante o procedimento cirúrgico, havia tirado fotos íntimas minhas enquanto eu estava dormindo e que um dos médicos que estavam na sala havia visto, com clareza, o que ele tinha feito. Naquele momento eu só soube mesmo chorar e me desesperar, até porque eu estava com minha filha. Eu pensava por que aquilo estava acontecendo comigo. Por conta disso, eu passei a ter que tomar os remédios para dormir, porque eu fico muito agitada. Eu fico com isso no pensamento. Todo dia eu fico tentando buscar imagens na minha cabeça, tentando saber o porquê isso aconteceu”, relata a mulher:
“Na mesma hora, você não se sente uma vítima. Você se sente culpada pelo que aconteceu. Você se sente uma pessoa suja, inútil. Eu não tenho palavras para expressar o que sinto com essa situação.”
Após ser informada do episódio, a direção perguntou se a mulher queria ir para casa ou registrar um boletim de ocorrência. Abalada, ela diz que seguiu para a Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) de Jacarepaguá, onde ouviu da delegada que ela deveria procurar um advogado.
“Fui à delegacia, conversei com a delegada sobre tudo que eu havia ouvido. Ela me orientou a procurar os advogados para saber, daí para frente, o que poderia ser feito”, relata.
Pedido de busca e apreensão no Jecrim
O caso foi caracterizado e investigado pela Deam de Jacarepaguá por registro não autorizado de intimidade sexual – que é produzir, fotografar, filmar ou divulgar conteúdo com cenas íntimas, de nudez ou ato sexual sem autorização dos participantes, com a pena de detenção é de 6 meses a 1 ano, e multa.
A paciente, o médico e o técnico de enfermagem foram ouvidos no mesmo dia, em 2 de agosto.
No mesmo dia, a delegada Viviane da Costa Ferreira Pinto determinou que o caso fosse comunicado ao Conselho Regional de Enfermagem do Rio (Coren-RJ) para que houvesse uma investigação ética contra o servidor por parte da entidade.
No dia 8 de agosto, a delegada representou contra o profissional no Juizado Especial Criminal (Jecrim), um órgão do Judiciário para crimes de menor potencial ofensivo.
No relatório, Viviane pediu que a Justiça concedesse um mandado de busca e apreensão do celular do técnico de enfermagem e a quebra de sigilo dos dados dos materiais apreendidos.
Em nota, a Polícia Civil afirmou que “a autoridade policial representou pela busca e apreensão de dispositivo eletrônico do autor” e que o “caso foi enviado ao Poder Judiciário”.
Questionada pelo g1, a Polícia Civil não informou se o mandado foi autorizado pela Justiça. A assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça afirmou que “não foi possível encontrar o processo na pesquisa feita a partir do nome indicado” e que “é provável que o caso esteja em fase de inquérito ou segredo de justiça”.
A defesa da agente de saúde entrou com uma petição no Jecrim pedindo que a juíza declinasse do caso e que ele fosse capitulado como estupro de vulnerável e que fosse para uma Vara Criminal.
“É um crime que gera muitas sequelas de natureza irreparável. É um tipo de crime que, hoje, acabou com a vida de uma pessoa”, diz o advogado Nicolas Dante Di Iulio, do Di Iulio, Telles & Santos Advogados.
“Ele praticou um ato libidinoso contra uma pessoa que estava vulnerável e que não poderia oferecer resistência. Ele se aproveitou dessa situação. Ao ser indagado, ele falou que estava procurando sinal. Quem está procurando sinal na sala de cirurgia, sendo que ele é enfermeiro, tem que estar olhando o paciente? Qual foi a finalidade que ele tirou as fotos? Ou foi para armazenar as fotos para fins de satisfazer seus desejos sexuais, por meio de masturbação ou alguma outra coisa do gênero? Ou simplesmente para divulgar aí as imagens que foram obtidas de forma ilícita por ele?”
‘Coisa ridícula, sem fundamento, esdrúxula’, diz suspeito
O suspeito negou que tenha feito fotos da paciente. Afirmou que estava com o “telefone celular para procurar sinal e já estava em ligação” e que “ficou surpreso com a notícia, pois é instrumentador há 20 anos”.
À reportagem, o técnico de enfermagem classificou a denúncia como “coisa ridícula, sem fundamento, esdrúxula” e disse que fez uma selfie para mandar para a própria mulher.
“Sou da área da saúde há 21 anos, e nunca ocorreu esse fato. Eu não entendi a história desse cara, que é sem fundamento. É uma coisa comum você pegar o aparelho para responder mensagens. Eu estava em contato com ela [esposa] e, quando fui pegar o telefone, fiz uma selfie para mostrar para ela: ‘Olha, mozão, estou trabalhando’. Naquele dia, mais 7 pessoas estavam na sala. Não pode um cidadão desse alegar uma coisa ridícula, sem fundamento e esdrúxula. Não sei se ele é frustrado, recalcado ou invejoso. Não sei”, disse.
Passagens pela polícia
O homem tem ao menos outras 4 anotações criminais:
- abuso sexual conta adolescente de 16 anos, em 2009. Caso foi arquivado em maio de 2024 porque passou do prazo para investigação (prescrição);
- ameaça e maus-tratos contra a mãe (em aberto);
- estelionato e associação criminosa (em aberto);
- apropriação indébita (em aberto).
O que dizem as autoridades
Em nota, o Conselho Regional de Enfermagem (Coren-RJ) informou que tem ciência do caso após ser notificado pelo Comissão de Ética Institucional e pela Deam-Jacarepaguá.
Segundo o órgão, foi aberta uma investigação na entidade, e todo o material produzido foi encaminhado à Câmara de Ética para o devido processamento, inclusive sobre uma possível suspensão cautelar do exercício de profissão.
O Coren-RJ afirmou que o profissional poderá ser advertido ou até ter a cassação do direito ao exercício profissional por um período de até 30 anos.
O Ministério da Saúde informou que o Departamento de Gestão Hospitalar (DGH) no Rio de Janeiro abrirá uma sindicância para apurar o caso e tomar as medidas cabíveis e que o servidor será desligado.
“O servidor temporário será desligado, conforme decisão desta sexta-feira (23) do Departamento de Gestão Hospitalar (DGH) da pasta, após avaliação interna realizada a partir do momento em que o caso veio à tona. As investigações internas e a colaboração com a Polícia Civil continuam. A vítima está recebendo todo o suporte necessário”, diz a nota.