Mesmo condenado em definitivo (quando não há mais como recorrer) desde 2022 por estuprar uma adolescente na zona rural de uma pequena cidade do Piauí, o funcionário público Gasparino Lustosa Azevedo conseguiu, em agosto de 2024, uma certidão de ficha limpa no estado.
Com essa certidão, expedida indevidamente pelo Tribunal de Justiça do Piauí, Azevedo concorreu a uma vaga de vereador de Sebastião Barros. Com 135 votos, não se elegeu, mas se tornou o 1º suplente do PT na câmara do município de 3.202 habitantes, a 900 km de Teresina. Se o titular do cargo desistir ou for cassado, ele pode assumir.
Se a certidão tivesse sido emitida corretamente e informasse que o servidor da prefeitura foi condenado a 10 anos de prisão por estupro de vulnerável, ele poderia ter sido barrado pela Justiça Eleitoral por causa da Lei da Ficha Limpa, que impede condenados em definitivo por determinados crimes de disputar as eleições.
O crime ocorreu em 2015, com a primeira condenação em 2019 e a condenação definitiva em 2022. No entanto, Gasparino Azevedo não foi preso desde então e, em 4 de outubro de 2024, dois dias antes do primeiro turno, a Justiça emitiu a ordem de prisão. Até a publicação desta reportagem, ele continuava sendo procurado pela Justiça.
Tribunal admite ‘falha técnica’
Procurado, o Tribunal de Justiça do Piauí assumiu que “uma falha técnica no sistema” permitiu a emissão indevida da certidão negativa, e que o problema foi corrigido.
“Ao tomar conhecimento do caso, a equipe técnica da Secretaria de Tecnologia da Informação e Comunicação do TJ-PI detectou uma falha técnica no sistema que levou ao desencontro de informações sobre o referido processo, o que já foi devidamente corrigido. Por fim, reafirmamos o compromisso do TJ-PI com a boa prestação jurisdicional, a transparência e o contínuo aperfeiçoamento de seus sistemas”, informou o tribunal (leia a íntegra ao final desta reportagem.)
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informou que apura o caso. “Havendo qualquer indício de fraudes e/ou erros apurados em face da emissão das certidões, serão tomadas as devidas providências”, disse o órgão, em nota.
A emissão de uma certidão negativa de antecedentes criminais para um condenado por estupro surpreendeu advogados criminalistas ouvidos pelo g1.
“Em tese é para aparecer tudo [na certidão], mas pode ser erro do próprio sistema do TJ que não constatou processo em segredo de justiça”, disse Gilberto Holanda, da seccional do Piauí da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PI).
“Geralmente eles puxam tudo, até caso que não tinha que aparecer, aparece. E o caso é de 2022, muito recente para não constar na ficha dele”, afirma Ingrid Ortega, advogada criminalista.
Azevedo não respondeu aos contatos do g1 por telefone. O PT afirmou que está acompanhando as investigações e que “não cabe ao partido realizar julgamentos prévios”.
A Prefeitura de Sebastião Barros diz que vai analisar a situação do funcionário.
Estupro na noite de Natal
Gasparino Azevedo é agente de saúde da prefeitura de Sebastião Barros desde 2013.
O estupro aconteceu no Natal de 2015. Segundo a sentença, Gasparino Azevedo violentou uma menina, então de 17 anos, por mais de uma hora, dentro do carro dele.
Para mantê-la sob seu poder, Azevedo fez ameaças de morte e espancou a jovem, chegando a deixá-la inconsciente.
Depois do crime, ele abandonou a vítima praticamente nua e fugiu. A garota sofreu lesões, e ficou traumatizada por dias, segundo a decisão.
“Ela estava toda arranhada de arame”, contou uma das testemunhas à Justiça.
Juiz que liberou candidatura é o mesmo que assina ordem de prisão
O processo contra Azevedo começou a tramitar em 2016. Em 2018, ele se afastou do serviço público por causa de um acidente, mas segue recebendo o salário, de R$ 2,8 mil por mês.
Em 26 de setembro de 2019, veio a sentença: a Justiça do Piauí condenou-o a 10 anos de prisão por estupro de vulnerável. Como esse crime é hediondo, a pena deveria começar a ser cumprida em regime fechado, na Penitenciária Major César.
Gasparino Azevedo pôde recorrer da decisão em liberdade e, em 2022, a condenação se tornou definitiva – no linguajar jurídico, transitou em julgado. Nesse momento, segundo a sentença, o réu deveria ser preso.
Isso, entretanto, nunca aconteceu e, em 4 de outubro de 2024, dois dias antes do primeiro turno da eleição de 2024, o juiz Noé Pacheco de Carvalho – o mesmo que, em 29 de agosto, havia autorizado a candidatura de Gasparino Azevedo — expediu uma ordem de prisão.
Naquele momento, entretanto, Azevedo não poderia ser preso. Isso porque a lei eleitoral impede a prisão de candidatos exceto em flagrante, no intervalo que vai de 15 dias antes da votação até dois dias depois – neste ano, entre 21 de setembro e 8 de outubro.
Lei da Ficha Limpa
Azevedo não poderia sequer estar filiado a um partido político, segundo especialistas ouvidos pelo g1. Isso porque, ao condená-lo por estupro, a Justiça do Piauí determinou a suspensão de seus direitos políticos.
“Isso está previsto no artigo 15 da Constituição Federal. Ter os direitos políticos suspensos é mais grave do que inelegibilidade, uma pessoa com direitos políticos suspensos ela não pode ser votada, ela não pode votar, ela não pode estar filiada a partido político”, diz Fernando Neisser, professor de direito eleitoral da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Em 27 de março de 2024, entretanto, Azevedo conseguiu se filiar ao PT. Procurado, o diretório não comentou o caso.
Além disso, a Lei da Ficha Limpa proíbe condenados definitivamente por estupro de disputar as eleições. E é aí que entra a importância da certidão de antecedentes criminais, exigida de todos os candidatos, explica Fernando Neisser, da FGV.
“[A certidão] Ela serve para duas coisas. Primeiro, para ver se o candidato objetivamente tem algum impedimento e, além disso, a certidão de antecedentes serve para trazer informação ao eleitorado. Eu posso ter processos e não estar condenado ainda, mas tem o fato de eu ter que trazer isso a público.”
Cabe ao Ministério Público Eleitoral (MPE), então, analisar essas certidões e avisar a Justiça Eleitoral, caso o candidato tenha alguma condenação que o impeça de concorrer.
Em 27 de agosto, entretanto, o MPE deu parecer favorável à candidatura de Azevedo, dizendo que ele apresentou “os documentos exigidos por lei”, e que não via “inelegibilidade que impeça a sua candidatura.”
Dois dias depois, o juiz eleitoral Noé Pacheco de Carvalho autorizou a candidatura do candidato.
O Tribunal Regional Eleitoral do Piauí disse que não tinha conhecimento da condenação e nem do mandado de prisão contra o candidato.
Outros eleitos e suplentes procurados pela Justiça
Gasparino Azevedo é um dos 18 procurados pela Justiça se se tornaram suplentes na eleição de 2024, como o g1 revelou com exclusividade. Outros dois se elegeram vereadores.
Outro dos procurados, Celmar Mucke, tornou-se 2º suplente do União Brasil em Tupanci do Sul (RS), também foi condenado por estupro de vulnerável – no caso dele, a vítima tinha 14 anos.
A certidão de antecedentes criminais de Mucke, entretanto, foi expedida dias antes de a condenação se tornar definitiva.
Segundo especialistas, condenados pela lei da Ficha Limpa podem vir a perder o cargo mesmo se eleitos.
Leia abaixo a nota do Tribunal de Justiça do Piauí sobre o caso:
Nota à imprensa
Sobre demanda do portal G1, o Tribunal de Justiça do Piauí (TJ-PI) vem informar que:
1) Situações como essa nunca haviam sido relatadas anteriormente e, diante disso, o TJ-PI instaurou comissão para estudo minucioso do ocorrido, instaurando sindicância para apuração dos fatos;
2) Assim que constatou a eventual falha, a Secretaria de Tecnologia da Informação e Comunicação do TJ-PI corrigiu devidamente o sistema;
3) Estão sendo implementadas ferramentas de aperfeiçoamento dos métodos de análise referentes à emissão presencial de certidões.
Por fim, reafirmamos o compromisso do TJ-PI com a boa prestação jurisdicional, a transparência e o contínuo aperfeiçoamento de seus sistemas.
Atenciosamente,
Assessoria de Comunicação