O voo atrasou devido ao mau tempo em Brasília, aumentando a ansiedade das famílias que esperavam seus filhos, netos e sobrinhos na noite desta quarta-feira (1º), em Maceió. A chegada acabou com dias de incertezas e angústia, depois da notícia de que a promessa de testes em grandes times de futebol era falsa, e os meninos estariam vivendo em condições precárias no município de Guapimirim, a uma hora e meia da cidade do Rio de Janeiro.
O desembarque das 38 crianças e jovens entre 12 e 21 anos foi feito na área interna do Aeroporto Zumbi dos Palmares, de onde eles foram levados à Casa de Direitos, localizada no Mirante do Jacintinho, onde as famílias aguardavam atendidas por assistentes sociais da própria Casa. Mesmo avisadas do procedimento, algumas famílias tentaram levar os filhos do aeroporto, mas foram encaminhadas ao Jacintinho, onde foram orientados sobre a situação.
Era mais de dez da noite quando as três vans chegaram à Praça do Mirante. Explosões de choro e agradecimentos a Deus eram ouvidas a todo momento, o alívio das famílias e meninos era palpável. As próprias equipes de apoio, composta por Casa de Direitos de Alagoas e Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Promoção da Paz (Sepaz) e da Mulher, Cidadania e Direitos Humanos (SEMCDH), Polícia Militar, além de conselheiros tutelares de quase todos os 13 municípios de origem dos jovens, tiveram dificuldade de segurar a emoção frente ao reencontro.
A recepção fora do aeroporto ocorreu para evitar a exposição ainda maior dos jovens, uma vez que o caso teve grande repercussão no Rio de Janeiro e em Alagoas; auxiliar as famílias em um trabalho psicossocial nesta volta, e informar e alertar para o que realmente aconteceu no período em que os meninos ficaram no Rio de Janeiro – saíram de Alagoas de ônibus, em 9 de agosto – e o andamento das investigações judiciais.
“Nem tudo o que reluz é ouro. Os filhos de vocês foram atraídos por uma falsa promessa e mantidos em condições precárias em Guapimirim. A denúncia que chegou à Casa de Direitos do Rio foi de que havia uma chácara com 40 meninos que seriam traficados para a Bélgica. Não havia contato com nenhum grande clube carioca, os meninos não participavam de atividades físicas na casa ou eram acompanhados por uma equipe técnica condizente com a formação de atletas, Além disso, os contratos assinados eram falsos. A investigação está sendo conduzida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro e vocês devem ser procurados aqui em Alagoas também para serem ouvidos e fazer os devidos esclarecimentos”, contou Monalyza Alves, coordenadora de Acesso à Justiça da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro e integrante da Casa de Direitos da Cidade de Deus, que acompanhou os meninos até Alagoas.
Os pais, que já estavam preocupados, ficaram visivelmente abalados com a notícia. Eles destacaram que outros jovens foram e estão sendo ainda abordados para o mesmo tipo de viagem e que o homem que levou o grupo ao Rio de Janeiro havia pedido mais dinheiro às famílias enquanto os meninos ainda estavam lá para cobrir “custos com a federação de futebol”.
Monalysa Alves fez um alerta especial para que os pais conversem com seus amigos e conhecidos a fim de evitar que novos casos de aliciamento como esse aconteçam. “Fiquem atentos, pesquisem os contratos, pesquisem junto aos clubes. Seus filhos têm talento e futuro, podem ser profissionais do futebol, só caíram no conto do vigário. Hoje vocês estão tendo seus filhos de volta, mas muitas famílias não tiveram essa sorte”.
Trabalho em conjunto
A informação chegou à Casa de Direitos do Rio de Janeiro no dia 10 de setembro, feita por denúncia anônima no Disque 100 de Direito Humanos. A abordagem dada foi de tráfico de pessoas e tratada com celeridade, pois a suspeita era de que os menores seriam enviados em breve para a Bélgica.
Quando as investigações começaram e se descobriu que os jovens haviam sido levados de Alagoas, o Estado do Rio de Janeiro acionou a Casa de Direitos em Maceió para auxiliar no retorno dos meninos para suas famílias. A equipe alagoana acompanhou o desenrolar da investigação, mantendo contato constante com a Casa carioca.
Esta foi a primeira ação coordenada entre as duas únicas Casas de Direito do País. A do Rio de Janeiro foi fundada em 2013, na comunidade Cidade de Deus e, devido às características da cidade, atende casos relacionados a tráfico de pessoas em adição às atividades de acesso à justiça e serviços públicos, como na Casa alagoana, inaugurada em 30 de maio deste ano.
“A ação integrada entre as duas Casas de Direito do Rio e de Alagoas permitiu que as 38 famílias tivessem a paz devolvida neste momento em que elas tiveram seus filhos e parentes de volta. Isso é um passo muito significativo, que mostra justamente a importância desses equipamentos e como as Casas podem ser grandes instrumentos de acesso à justiça para as pessoas mais carentes. A equipe da Casa de Direitos alagoana vai fazer o acompanhamento tanto com assistência psicológica e social a esses jovens e famílias que passaram por esse processo traumático, como também acompanhar o processo que o Ministério Público vai dar andamento a respeito dessa suposta quadrilha de tráfico de pessoas aqui em Alagoas”, declarou o secretário de Promoção da Paz, Adalberon Sá Júnior.
Condições precárias
O caso dos 38 jovens alagoanos chamou atenção devido ao número de vítimas e às condições nas quais eles se encontravam na chácara em Guapimirim. Apesar de terem ido para participar de peneiras em grandes clubes do Rio de Janeiro, os garotos não tinham sequer bola, acesso ao campo de futebol da chácara ou participavam de alguma atividade de condicionamento físico. Apenas oito deles estavam matriculados na escola e mesmo assim não frequentavam a aula.
Estavam em uma casa de dois cômodos, dos quais apenas um tinha camas beliches, os demais meninos dormiam em colchonetes finos no chão e até na varanda da casa – sendo que Guapimirim é uma cidade na região serrana do Rio de Janeiro, onde as temperaturas tendem a ser mais frias. Além disso, a casa tinha apenas um banheiro para os jovens e as duas mulheres que tomavam conta deles.
Ao todo, foram levados para o Rio de Janeiro, sob a falsa promessa, 30 meninos de 12 a 17 anos e oito jovens entre 18 e 21 anos, um deles natural de Aracaju, em Sergipe. Famílias e conselhos tutelares de 13 municípios compareceram ao Jacintinho para buscá-los, e um rapaz de 21 anos, morador de Inhapi, foi conduzido para casa pela equipe da Casa de Direitos ainda na noite desta quarta-feira.
Monalyza Alves, da Casa de Direitos do Rio de Janeiro, alertou que entre os pré-requisitos oficiais em caso de contrato real com um clube de futebol europeu, para que os meninos pudessem sair do país era preciso, entre vários outros documentos, autorização específica dos pais ou responsáveis para este fim, passaporte e contrato de trabalho com o clube assinado, estabelecendo salário e direitos aos jovens. Com o tipo de autorização de viagem que os garotos estavam, as pessoas com eles em Guapimirim não poderiam fazer suas matrículas na escola ou solicitar assistência hospitalar em caso de alguma necessidade.