A estreia de "Noé", polêmico filme de Darren Aronofsky que chega aos cinemas nesta quinta-feira (3), dá início a uma onda de filmes que unem histórias bíblicas ao espetáculo cinematográfico típico dos blockbusters atuais: batalhas, explosões, efeitos especiais, 3D.
Não é à toa que os filmes religiosos, muito populares nos anos 1950, encontraram na Hollywood contemporânea um lugar para renascer. Como os longas de super-heróis, eles baseiam a narrativa em histórias conhecidas do público e marcadas por elementos épicos, perfeitas para o uso de tecnologia digital que costuma ajudar a levar grandes plateias ao cinemas e a fazer sucessos de bilheteria. Os riscos, porém, são grandes, já que liberdades narrativas têm grandes chances de serem encaradas como ofensas.
Aronofsky, que se declarou ateu, usou um orçamento de US$ 125 milhões (R$ 282 milhões) para contar, à sua maneira, uma das mais conhecidas histórias religiosas. No filme, escrito em parceria com Ari Handel, ele insere personagens e situações que não estão na Bíblia e adota tom sombrio, mostrando um Noé quase tão conturbado quanto a bailarina interpretada por Natalie Portman em seu filme anterior, "Cisne Negro".
A controvérsia não demorou a chegar. Proibido em vários países árabes, "Noé" recebeu tantos protestos de grupos religiosos que a Paramount, responsável pelo lançamento, teve de adicionar um aviso ao material promocional dizendo que "embora liberdades artísticas tenham sido tomadas, o filme é fiel à essência, aos valores e à integridade da história".
A trama básica, de fato, é a mesma. Insatisfeito com as ações do homem desde a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, Deus decide destruir o mundo para poder recomeçá-lo. A pedido Dele, Noé constroi uma arca e abriga nela um casal de todas as espécies de animais, que darão continuidade à vida após o fim do dilúvio.
A diferença crucial é que, no filme, Noé acredita que a vontade de Deus é salvar os animais, inocentes no processo de destruição da Terra, mas não os homens, causadores de todo o mau. A mensagem ambientalista de Aronofsky (Noé não come carne e só tira o necessário da natureza) implica que o protagonista sinta-se no dever de garantir o fim dos humanos, mesmo que isso signifique impedir, a qualquer custo, que seus próprios filhos se reproduzam.
O filme ecoa, portanto, temas atuais como o aquecimento global e o fanatismo religioso, com um herói disposto a cometer atos brutais em nome de Deus.
Bem interpretado por Russel Crowe, autoritário, duro e nada carismático no papel, Noé é temido pela própria família, ignora os apelos para salvar as pessoas que gritam desesperadas do lado de fora da arca e chega a deixar que uma jovem morra pisoteada por um exército de descendentes de Caim.
É quando este exército tenta violar a arca que Aronofsky pode lançar mão dos efeitos especiais, com longas cenas de batalha que tiram o tom religioso de "Noé" e o aproximam de um filme de ação comum.
No combate, Crowe conta com a ajuda de criaturas chamadas de "Guardiões", responsáveis pelo primeiro choque do filme: gigantes e feitas de pedra, elas mais parecem ter saído de "Transformers" do que da Bíblia. O melhor uso da tecnologia digital é feito nas cenas em que milhares de animais (pássaros, cobras, elefantes) chegam até a arca, e é uma pena que Aronofsky tenha optado por não mostrá-los saindo dela. Chama a atenção, aliás, a reduzida presença dos animais em cena, visto que preservá-los era, para Noé, sua grande missão.
O filme também é permeado por pequenos "clipes" de imagens estilizadas que retratam premonições, passagens bíblicas e etapas da evolução humana, e por uma série de dramas familiares: o amor juvenil entre o filho mais velho de Noé, Sem (Douglas Booth), e uma menina órfã que ajudou a criar, Isla (Emma Watson, a Hermione de "Harry Potter); a rebeldia do filho do meio, Cam (Logan Lerman); e o instinto maternal da mulher, interpretada por Jennifer Connelly, que repete com Crowe o par romântico de "Uma Mente Brilhante".
Tantos elementos, propostas e ideias resultam em um filme bastante irregular, que perde muito de sua força conforme se alterna, rápida e frenquentemente, entre bons e maus momentos. Em geral, a sensação é de se estar diante de uma grande salada cinematográfica – que, por isso mesmo, tem qualquer coisa de intrigante.