Resultado da mistura de influências indígenas, africanas, espanholas, lusas e do Brasil colonial, o linguajar mato-grossense produziu ao longo de três séculos um vocabulário singular repleto de termos e expressões que, até hoje, podem causar estranheza até mesmo a falantes da língua portuguesa. De maneira inédita, agora este inventário está sendo sistematicamente compilado e disponibilizado ao público. O escritor Carlos Gomes de Carvalho divulgou na última semana o fruto de dez anos de curiosidade e pesquisa: um dicionário com 1.495 verbetes exclusivos do falar mato-grossense, os quais não se encontram em qualquer outro dicionário nacional.
“Jacuba”, “Bereré”, “Ajoujar”, “Digoreste”, "Agora quando?", "Abombado", “Uru”, "Rebuçar", “Descabriado”, "Ê Ah!" são algumas das expressões listadas no “Dicionário de Termos e Expressões de Mato Grosso” (Editora KCM), cujo material abrange o palavreado típico do território mato-grossense desde o século XVIII.
Autor do livro, Carlos Gomes de Carvalho, que também é advogado e membro da Academia Mato-grossense de Letras (AML), explicou que os termos e expressões foram coletados principalmente na literatura e na imprensa local, mas também na convivência com mato-grossenses, e depois confrontados com dicionários da língua portuguesa. Ao todo, foram 77 autores pesquisados e 99 livros consultados.
Um dicionário para MT
Segundo o escritor, foi utilizado um critério de legitimidade no processo de criação do livro, intensificado nos últimos dois anos. Caso um termo encontrado já existisse com o mesmo significado e pronúncia em algum outro dicionário que não-mato-grossense ou fosse mais amplamente falado em outra região, ele era sumariamente descartado da obra.
Na obra, cada palavra ou expressão está acompanhada da referência de onde ela foi encontrada, em contos de Silva Freire, na prosa de Ricardo Guilherme Dicke, na fala de algum mato-grossense legítimo ou em textos publicados pela imprensa local. Parte das palavras desse dicionário naturalmente já caiu em desuso nas ruas de Cuiabá ou no interior do estado (ou até mesmo em localidades do emancipado estado de Mato Grosso do Sul, já que o livro abrange um período de três séculos), mas o conjunto da obra revela traços da cultura, da geografia e da história local.
É por meio de verbetes do dicionário que se recorda, por exemplo, como eram as touradas praticadas em Cuiabá em tempos mais remotos. O livro registra o termo “jacuba”, já em desuso, que designa o auxiliar e escudeiro do antigo toureiro. Já o termo “uru”, também não mais usado amplamente, era o jeito de se fazer referência a um cesto de fibra vegetal ou até mesmo às nádegas de uma mulher.
A obra também registra em definitivo o significado de ditados, frases e expressões mais consagradas do discurso local. Se poucos cuiabanos, mesmo hoje, têm dúvida de que “digoreste” significa algo bom e da melhor qualidade, alguns ainda não têm clareza do porquê de se falar “sou cuiabano de chapa [tchapa] e cruz” no intuito de expressar orgulho de sua terra.
O dicionário de Carlos Gomes de Carvalho traz mais de uma versão e abre espaço para as discussões: “chapa” faria referência à certidão de nascimento, enquanto “cruz” representaria a morte, na mesma terra natal; no entanto, como logicamente só poderia dizer tal coisa alguém que já morreu ou que pretende morrer na mesma terra, Carvalho explica no livro que outra versão do significado é “gente de nome”, de família tradicional, já que as antigas famílias da elite local faziam questão de relembrar sua ascendência portuguesa mencionando a “chapa” (da armadura dos colonizadores) e a “cruz” (“Cruz de Malta” ou “Cruz de São João”, de oito pontas, que representa Portugal).
Cultura ameaçada
Apesar de abranger os linguajares de Mato Grosso como um todo, Carvalho admite que a maior parte dos verbetes no livro é do universo do homem pantaneiro e do cuiabano, mas defende que o falar local há tempos necessitava de um registro para a posteridade. Segundo ele, a cultura cuiabana vem sofrendo nos últimos anos uma intensa desvalorização e, nesse processo, o linguajar é a principal vítima, com risco de perder e esquecer seus traços.
Isso porque, segundo o autor, no Brasil existe ocorre uma supervalorização de outros sotaques – como os do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Rio Grande do Sul – que acaba marginalizando ou tratando o “cuiabanês” de maneira jocosa ou até pejorativa.
“É no campo da linguagem que se dá a valorização de um povo. A linguagem expressa a alma de um povo. O estado pode ser frágil, a economia pode ser frágil, mas se tiver uma linguagem, esse povo se projeta no tempo”.