Fazia tanto calor dentro da "roupa de astronauta" que a médica brasileira Rachel Soeiro vestia que, depois de 40 minutos, ela mal conseguia respirar.
Tanta proteção tinha motivo: a médica integrava uma operação de emergência montada na Guiné para tratar pacientes da maior epidemia de ebola já registrada.
O vírus, que mata cerca de 90% dos infectados, é transmitido por secreções corporais como sangue, suor e espirros. É, por isso, extremamente contagioso.
Segundo a OMS, nos últimos meses mais de mil pessoas foram infectadas e 630 morreram da doença, que se estendeu pela primeira vez para três países (Serra Leoa, Libéria e Guiné).
Ainda não foi descoberto nenhum remédio capaz de curar o ebola, mas o corpo do próprio paciente pode se recuperar sozinho.
"É como uma gripe. Não temos remédio para matar o vírus da gripe: é o corpo que responde e mata o vírus, e a gente melhora. A diferença é que o vírus do ebola é muito mais agressivo que uma gripe", explica Rachel, que passou um mês na Guiné.
A experiência da médica, de 35 anos, foi excepcional: dos 21 pacientes de ebola em Telimélé, 16 sobreviveram.
Por isso, Rachel vivenciou diversas vezes um processo de alta completamente diferente. Ao sair da área de isolamento do hospital, os pacientes tomam um banho de cloro e ganham roupas novas, já que as antigas estão contaminadas.
São recebidos pelos médicos com um abraço, para que percam o estigma de "contagiosos" e voltem a ser aceitos pela comunidade. A doença é cercada de preconceito.
O abraço que deu em uma criança de 4 anos e em sua mãe, conta Rachel, foi a "melhor alta" de sua vida.
"A mãe chorou junto comigo e ele estava até assustado com tantos abraços. Foi a melhor alta da minha vida, de uma criança que eu não achava que ia resistir. Eu chegava em casa sem saber se ia encontrá-lo no dia seguinte, e ele saiu."
Leia abaixo o depoimento:"Quando você pega ebola, em até dez dias ou você vai morrer ou seu próprio corpo vai se encarregar de matar o vírus.
É como uma gripe. Não temos remédio para matar o vírus da gripe: é o corpo que responde e mata o vírus, e a gente melhora. A diferença é que o vírus do ebola é muito mais agressivo. Ele mata por falência múltipla dos órgãos. O fígado e os rins param de funcionar. O sangue corre devagar no corpo.
Trabalho com (a organização) Médicos Sem Fronteiras (MSF) desde 2011. Em maio me ligaram por causa da epidemia de ebola na Guiné. A epidemia começou no sul, onde as pessoas estão tendo dificuldade para aceitar o ebola. Uma das formas de contágio é por secreção – sangue, lágrima, suor, vômito ou espirro – e, na Guiné, que é um país muçulmano, as pessoas têm o costume de lavar o corpo quando a pessoa morre. Mas é nesse momento que o vírus está mais contagioso.
Uma pessoa pode ir a um funeral, voltar para o vilarejo dela assintomática e aí adoecer. Foi assim que a região para onde fui recebeu o vírus. Num instante, a epidemia se alastra.
Logo o MSF foi para lá e começou a isolar as pessoas. Quando eu cheguei eram 16 casos suspeitos e, no dia seguinte, viraram 16 confirmados.
O diferente de tratar uma epidemia de ebola é que você não pode ficar o dia inteiro ao lado do paciente, só de jaleco. Por causo do contágio, você tem que ser muito protegido. É preciso colocar uma roupa de borracha amarela, luva, máscara, touca, óculos, fica parecendo uma roupa de astronauta.
Faz muito calor, e a gente aguenta ficar, no máximo, 40 minutos ao lado do paciente. Quando não consegue mais respirar porque está transpirando dentro da máscara, saía.
Uma equipe do lado de fora espera com um pulverizador com cloro. Tira os óculos, pulveriza, máscara, pulveriza, macacão amarelo, pulveriza. A gente sai, toma bastante líquido para hidratar e entra de novo.
A gente faz o paciente comer, beber, mas não há tratamento específico para o ebola. É um tratamento sintomático: para febre, dor, vômito. É um trabalho de incentivar o paciente a combater o vírus.
Quanto antes ele chega no hospital, melhor é a resposta do corpo contra o vírus. Felizmente, onde eu estava, tivemos um paciente logo nos primeiros dias que ficou muito mal, mas se recuperou e teve alta. Quando saiu, contratamos ele para ir nas comunidades e explicar o que era a doença.
Todas as altas são assim: a gente faz um exame de sangue para ter certeza que a pessoa não tem mais o vírus, mas a roupa que ela tinha usado ainda fica contaminada. Todo mundo que sai tem que tomar um banho de cloro, porque o vírus morre com o cloro, e a gente compra uma roupa nova para o paciente.
Do lado de fora, sempre tem alguém da nossa equipe para abraçar o paciente. Como a forma de contágio é por contato, durante o período de epidemia nossa mensagem é evitar dar a mão, abraçar aquela pessoa. Quando ela sai, a gente abraça para mostrar que ela não pode mais contaminar outras pessoas, para ela não ficar estigmatizada.
A gente se revezava para cada um fazer uma alta. A melhor foi a de uma criança de 4 anos. Foi nosso último caso confirmado positivo e a mãe dele já estava internada no hospital com ebola. Ele teve febre, a prima trouxe ele e ele foi isolado como suspeito. Ele estava muito doente, tinha vômito, diarreia, tosse, e o teste veio positivo. Na hora em que levei ele para o lado dos suspeitos e a mãe viu que ele estava muito doente ela não parava de chorar.
Fomos fazendo o que podíamos fazer: colocamos soro, insistia para ele comer, e a mãe do lado dele o tempo todo. Ela foi melhorando e ficou negativa. Explicamos que ela poderia sair e ela falou: "Não, é meu filho. Vou ficar aqui do lado dele e só vou sair quando ele puder sair".
Das 16 pessoas que estavam no hospital, tivemos mais uma morte e os outros tiveram alta. No final ficaram só ela e o filho. Fizemos o teste e deu negativo.
Nesse momento eu falei: quero abraçar eles. Foi muito bonito, porque como era nosso último paciente todo mundo estava lá, vieram os motoristas, toda a equipe.
Foi a maior festa, eu abracei e todo mundo quis abraçar ele depois. Ela chorou junto comigo e ele estava até assustado com tantos abraços. Foi a melhor alta da minha vida, uma criança que não achava que ia resistir. Eu chegava em casa sem saber se ia encontrá-lo no dia seguinte, e ele saiu.
Não tive medo (de contaminação) em nenhum momento. Apesar de ser muito contagioso, nós tomamos todas as precauções. O que acontece é que é muito intenso: como é um vírus muito agressivo, todos os pacientes em algum momento ficam muito doentes. A gente entrava às 7h30 e ficava no hospital até muito tarde, 21h, 22h, tentando fazer o máximo. Você sempre sai pensando "será que vou encontrar todo mundo aqui amanhã?". Essa angústia é o pior.
Tivemos 75% de cura, mas infelizmente esse não é o perfil da epidemia. É um vírus bem letal, e em outras regiões da Guiné ainda há um índice de letalidade muito alto, porque as pessoas chegam tarde.
Nosso sucesso foi porque o pessoal chegou cedo, não esconderam os doentes em casa. E acho que também porque um paciente deu o testemunho dele. Mostrou que a doença, mesmo sendo grave, tem cura."