Ligada à literatura desde o nome, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) sempre teve relação estreita também com o jornalismo. Nos últimos anos, passaram pela cidade do sul fluminense repórteres consagrados como os americanos Gay Talese, Lilian Ross, Jon Lee Anderson e Philip Gourevitch, os britânicos Robert Fisk e Christopher Hitchens e o indiano Suketu Mehta, entre outros estrangeiros e brasileiros. Além, é claro, de vários escritores que têm na imprensa seu ganha-pão.
Em sua 12ª edição, que começa na quarta-feira, dia 30, a Flip aprofunda essa relação com o jornalismo, já na escolha do autor homenageado. O carioca Millôr Fernandes, que completaria 90 anos em 2014, foi escritor, desenhista, humorista, tradutor e dramaturgo, mas sempre se considerou essencialmente jornalista. Sua trajetória revolucionária na imprensa nacional será discutida em mesas na Tenda dos Autores e na Casa da Cultura, por jornalistas e cartunistas como Jaguar, Reinaldo, Loredano, Claudius, Hubert, Sérgio Augusto e Chico Caruso.
Além disso, a postura crítica e combativa de Millôr vai orientar debates sobre os rumos do jornalismo hoje. Estarão em Paraty este ano os americanos David Carr, colunista do “New York Times”, Glenn Greenwald, que revelou os documentos vazados por Edward Snowden sobre a espionagem americana, e Charles Ferguson, diretor do documentário “Trabalho interno”, além da argentina Graciela Mochkofsky, autora de um livro sobre a relação entre os Kirchner e o jornal “Clarín”. Todos, de alguma forma, discutindo a relação entre imprensa e poder, tema de uma das mais célebres frases de Millôr: “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”.
— Millôr foi um criador de espaços de liberdade no jornalismo. Tomou de assalto a revista da família brasileira, “O Cruzeiro”, e a partir dali não parou mais. Para os dias de hoje, acho que ele traz a lição de uma crítica política incansável e sempre bem-humorada — diz o curador da Flip, Paulo Werneck.
Glenn Greenwald e David Carr estão hoje no centro do debate sobre imprensa e poder nos EUA e em outras partes do mundo. Por mais que eventualmente concordem nas críticas ao governo Obama, representam lados quase opostos da discussão sobre os rumos do jornalismo. Aos 57 anos, o colunista de mídia e repórter cultural Carr, autor do livro “A noite da arma” (Editora Record), praticamente se tornou um porta-voz — e também defensor — do “New York Times”, jornal em que trabalha desde 2002. Em seus artigos, ele volta e meia trata do futuro do jornal e também costuma discordar da descrença alimentada por muitos gurus de internet de que o jornalismo vai deixar de existir.
Na coluna de Carr publicada no “New York Times” no último dia 21, ele escreveu: “Nós estamos todos a bordo de um trem, um que deixou o papel para trás, um em que estamos constantemente em tempo real, onde sabemos um pouco sobre tudo e nada sobre alguma coisa”.
— É certo que existe um ódio em parte das pessoas pela grande mídia. Mas eu acho que não se compreende que o trabalho sujo da reportagem que é feito pelos veículos de comunicação é que dá início a muitas discussões — disse Carr, em entrevista por e-mail. — As pessoas adoram, por exemplo, lembrar que nossa cobertura da corrida para a Guerra do Iraque foi insuficiente, o que é verdade, mas elas parecem não se lembrar que nós voltamos atrás, pedimos desculpas e estivemos no Iraque por mais de uma década cobrindo um conflito que a maior parte das outras organizações de mídia abandonou. Eu não me orgulho de trabalhar no “New York Times” porque ele é perfeito. Eu me orgulho em trabalhar lá porque fazemos o nosso melhor, damos correções quando erramos, e voltamos a uma história quantas vezes for necessário.
IDEOLOGIAS E CRENÇAS
Carr também é um crítico habitual do que ele chama de “imprensa partidária”: um tipo de jornalismo que, segundo ele, é moldado em ideologias e crenças e pode se confundir com ativismo político. Em julho do ano passado, ele publicou um famoso artigo no “Times” intitulado “Jornalismo, mesmo quando é tendencioso”, em que partiu das denúncias feitas por reportagens de Greenwald sobre a espionagem do governo americano ao redor do mundo. O trabalho de Greenwald se originou de arquivos vazados para ele por Edward Snowden, um ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês), em que se apontava um esquema de vigilância em ligações e correios eletrônicos, inclusive afetando chefes de Estado de outros países. As reportagens foram publicadas em jornais como o inglês “The Guardian” e O GLOBO.
Sobre Greenwald, Carr escreveu: “Acredito que o ativismo possa prejudicar a visão. (…) Não digo isso para afirmar que o trabalho de Greenwald é suspeito, apenas que uma ideologia tendenciosa cria sua própria narrativa. Ele tem aparecido em vários cantos da TV para abordar suas críticas, o que parece mais como uma campanha do que uma discussão sobre a história que ele publicou”.
— A imprensa partidária teve um papel significativo nos eventos mundiais, mas foi um trabalho baseado em fatos, bem argumentado e que resistiu ao escrutínio de outros jornalistas. Já em relação à campanha feita por Glenn depois da publicação, eu teria tomado atitudes diferentes. Mas ele foi responsável por revelar as histórias mais importantes da década, uma posição em que eu nunca estive, então quem sou eu para julgá-lo? — diz Carr.
O colunista do “New York Times”, porém, é mais duro ao falar de sites e grupos de cobertura jornalística que baseiam seu trabalho numa posição política.
— Eu não leio muito esse jornalismo que segue uma agenda. Acho que não há problemas em se ter um ponto de vista que é divulgado e baseado em fatos, mas usar o jornalismo apenas como mais uma ferramenta no esforço de criar alguma mudança é uma coisa que não me interessa como leitor e como profissional — afirma Carr. — Acredito que o verdadeiro desafio é saber se os jornalistas partidários exigem de seus aliados a mesma responsabilidade que eles exigem de seus alvos. Quando alguém que defende a mesma causa erra, eles são tão implacáveis e ferozes?
Para Greenwald, porém, a pergunta de Carr poderia ser feita para o próprio “New York Times”. Aos 47 anos, autor de “Sem lugar para se esconder” (Editora Sextante), o jornalista americano mora no Brasil, continua analisando o material de Snowden e é um dos fundadores da revista digital “The Intercept” (firstlook.org/theintercept).
— Eu acho que o jornalismo sempre é uma campanha. Sempre há objetivos e os jornalistas têm pontos de vista diferentes. Se você olhar para a história do jornalismo nos EUA, vai ver que quase todos os profissionais tiveram opiniões fortes, trabalharam para um resultado específico, fizeram investigações sobre políticas de que eles discordavam. Isso é fazer jornalismo com paixão, com alma. Essa forma que o David Carr defende é um jornalismo sem alma — avalia Greenwald, em entrevista por telefone. — Mesmo no “New York Times” há opinião. Veja o que eles fizeram antes da Guerra do Iraque: apoiaram a política do Bush em atacar o país, mas fizeram isso fingindo que não tinham uma posição. Só que eles tinham. Da mesma forma que agora eles estão apoiando Israel em sua guerra contra Gaza.
PERSEGUIÇÃO A JORNALISTAS E FONTES
Carr e Greenwald não estarão juntos na Flip para um debate direto, mas suas mesas abrem e fecham o sábado da festa: Greenwald vai se reunir com Charles Ferguson às 10h, sob o tema “Liberdade liberdade”; e Carr participa da mesa “Narradores do poder”, com a argentina Graciela Mochkofsky, às 21h30m. No caso de Greenwald, liberdade está no centro das discussões tendo em vista que ele já sofreu ameaças dos governos americano e britânico após a publicação dos arquivos divulgados por Snowden.
Em agosto de 2013, seu companheiro, o brasileiro David Miranda, chegou a ser detido no aeroporto de Londres e teve um laptop apreendido sob a acusação de envolvimento com terrorismo. Snowden, por sua vez, foi acusado de roubo de propriedade do governo americano e espionagem. O ex-analista da NSA vive hoje na Rússia.
— O importante é debater o significado de liberdade e privacidade na época da internet, e também o perigo dos governos em tentar controlar informações. O governo americano vem me ameaçando durante muitos meses nas esferas pública e privada. Se eu voltar aos EUA, posso ser preso — diz Greenwald. — É curioso porque Obama foi muito popular em Brasil, Alemanha e outros países da Europa há cinco anos. Mas isso mudou. As pessoas passaram a enxergar a realidade de seu governo, e a ideia de que os EUA defendem a democracia e a liberdade ruiu. O governo Obama está atacando muitos jornalistas e também suas fontes. Mais fontes estão sendo processadas pelo governo americano nos últimos cinco anos do que em toda a História dos EUA.
Além do caso americano, a mesa “Narradores do poder” trará para os debates da Flip a situação da imprensa na América Latina, mais especificamente na Argentina. Repórter com longa experiência em veículos como “Pagina 12” e “La Nación”, Graciela Mochkofsky, de 45 anos, é autora de livros que investigam a relação entre imprensa e poder em seu país ao longo das últimas décadas. Em “Timerman: o jornalista que quis ser parte do poder”, ela traça o perfil do editor Jacobo Timerman, personagem influente e ambíguo das décadas de 1960 e 1970, que conspirou contra governos democráticos mas também foi perseguido, preso e torturado pela ditadura instaurada em 1976. Em “Pecado original: Clarín, os Kirchner e a luta pelo poder”, investiga os atritos entre os governos de Néstor e Cristina e o conglomerado de comunicação argentino. Ambos os títulos ainda são inéditos no Brasil.
Para Graciela, a Argentina vive hoje um período de transição no modelo de relação entre imprensa e poder que predominou no século XX, que ela define como “aquele em que um meio vende ao poder político e econômico sua ‘influência’ sobre um público em troca de poder ou dinheiro”.
— Esse modelo não foi uma invenção argentina, e também entrou em colapso em outras partes do mundo. O caso mais claro é o do império de Rupert Murdoch. O que vai substituir esse modelo ainda é uma incógnita. Na Argentina, além disso, falta sair da polarização da última década, em que os meios tomaram partido a favor ou contra o governo. Quase toda a imprensa se tornou partidária — diz Graciela, que acaba de ter lançado em edição digital, pela editora e-galáxia, o livro “Estação terminal”, sobre o acidente ferroviário que deixou mais de 50 mortos na estação Once, em Buenos Aires, em fevereiro de 2012.
DESAFIOS DA NOVA GERAÇÃO
Marco dessa polarização, o debate sobre a Lei de Meios, criada em 2009 mas declarada constitucional apenas em 2013, foi “parte de uma guerra do governo com o ‘Clarín’”, que teve como resultados, até agora, a “retirada de parte do poderio econômico” do grupo, a “criação de alguns novos meios” e “uma mudança no conteúdo da programação pública”, diz Graciela. Mas a jornalista acredita que o fator mais decisivo para a mudança da relação entre imprensa e poder não é a nova lei, e sim “as novas experiências, os novos empresários, a nova geração de jornalistas” no país.
— O desafio da nova geração é praticar bom jornalismo em um momento de transição e crise. Mas ela tem uma grande vantagem sobre as gerações anteriores: qualquer um com talento e perseverança suficientes pode montar seu próprio meio e fazer um bom trabalho. De fato, muitos já têm seu próprio meio nas redes sociais e estão fazendo coisas interessantes — diz Graciela, que, depois de 15 anos como repórter em grandes veículos, deixou as redações em 2003 e, em 2010, fundou a revista digital independente “El Puercoespín” (www.elpuercoespin.com.ar), que chegou a ter 120 mil leitores por mês, mas atualmente está “em pausa”, por falta de financiamento.
Independência, liberdade e combatividade são aspectos da carreira jornalística de Millôr que estarão presentes nos debates em Paraty. Sobretudo seu amor pelo jornalismo, talvez o traço mais marcante na trajetória múltipla daquele que se autointitulava “um escritor sem estilo”, como lembra o curador Paulo Werneck:
— Millôr gostava de se definir como jornalista, foi um jornalista, fez de revistas e jornais o seu laboratório experimental. Não foi um jornalista que abandonou o jornalismo assim que possível, para se refugiar no mundo sagrado do livro. O habitat natural dele era mesmo a revista, o jornal. O barato não era apenas escrever, desenhar e editar em linguagem revolucionária, mas pôr isso à disposição de qualquer brasileiro que tivesse acesso a um exemplar de “O Cruzeiro”. Há algo de guerrilha, de cavalo de Troia nessa estratégia. Heresia na sala de estar.