Apesar dos números alarmantes de violência contra indígenas em Mato Grosso do Sul, o governo da presidente Dilma Rousseff ainda não homologou nenhuma demarcação de terra no Estado em quase quatro anos de mandato. Dilma assinou as 11 homologações, feitas entre 2011 e 2013, apenas no Norte do País, a despeito de esta região não concentrar nem metade da população indígena brasileira e de os maiores conflitos estarem localizados em outras áreas brasileiras.
De acordo com dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), entidade ligada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), nos três anos analisados do governo atual houve um total de 164 assassinatos de índios no País, sendo mais de 60% – 102 – apenas em Mato Grosso do Sul, Estado com cerca de 67 mil indígenas que se notabiliza pelos mais violentos conflitos por terra envolvendo as etnias e empresários/proprietários ligados ao agronegócio – plantio de soja, milho e cana-de-açúcar – e à pecuária. Nos últimos 11 anos, 349 foram mortos só no Estado, o que ajudou a elevar sua média de homicídios para 31 a cada 100 mil habitantes.Dilma assinou as 11 homologações, feitas entre 2011 e 2013, apenas no Norte do País, a despeito de esta região não concentrar nem metade da população indígena brasileira e de os maiores conflitos estarem localizados em outras áreas brasileiras.
A Funai (Fundação Nacional do Índio) e o governo não se pronunciarem a respeito das causas que levaram a esses números, mas especialistas ouvidos pelo iG afirmam que a falta de demarcação de terras é o principal fator para explicar a violência.
"Como me definiu recentemente uma liderança de Dourados (MS), a paralisia nas demarcações torna as reservas uma bomba-relógio. A superlotação em lugares como esses faz com que os problemas se acumulem", afirma Spensy Pimentel, professor de Etnologia Indígena da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), de Foz do Iguaçu (PR). "Para que se tenha uma ideia, só na Terra Indígena (TI) de Dourados nascem cerca de 500 crianças por ano. Não há cesta básica e programa social que resolvam esse problema. A solução é demarcar as terras, direito garantido pela Constituição de 1988."
A maior parte das vítimas é da etnia Guarani-Kayowá, atualmente composta por quase 50 mil pessoas em Mato Grosso do Sul e que ocupa, efetivamente, 50 mil hectares de área, divididos em pequenos espaços de terra – a maior densidade populacional, na Reserva Indígena de Dourados, possui 13 mil indivíduos dividindo apenas 3,6 hectares de terra. A própria Funai classifica a situação como de confinamento, o que acirra a violência.
O problema também contribui para o aumento de suicídios entre os índios, muito maior do que a média nacional: nos últimos 13 anos, 684 casos foram registrados, quase o triplo do período entre 1986 e 1987, quando ocorreram 244 mortes dessa forma. A situação é especialmente elevada no recordista Mato Grosso do Sul, que só no ano passado registrou 73 suicídios – 72 deles cometidos por Guarani-Kayowá, sendo 13 na reserva de Dourados.
Presidente do CIMI, o bispo Erwin Kräutler afirma que a falta de procedimentos de demarcação escancara graves consequências à vida das comunidades. "O governo federal deve ser responsabilizado pela trágica realidade vivida pelos povos indígenas que não têm assegurada a posse de suas terras e também age de modo conivente diante das invasões e da depredação dos recursos naturais, além de ser omisso nas suas obrigações constitucionais de fiscalizar, proteger e assegurar o usufruto das terras pelos povos indígenas", diz em relatório.
"São os direitos econômicos que, infelizmente, têm prevalecido sobre os que os índios têm sobre a terra", avalia o filósofo Roberto Liegott, missionário da entidade há mais de duas décadas. "E essa situação de grande contingente populacional e pouca área para subsistência só colabora para essa violência, como no caso escancarado dos Guarani-Kayowá. Há ampla prevalência de comunidades vivendo acampadas nas margens de rodovias, sem terras para plantar ou mesmo para viver, esperando que o poder público demarque, o que não acontece."
Por mais que os governos antecessores tenham homologado terras em outras regiões que não a Norte do País – onde, com uma população de 305.873 índios, se concentram 98,6% das áreas oficialmente indígenas no País (total de 820 mil indígenas) –, as demarcações no Centro-Oeste, Sudeste, Sul e Nordeste são negligenciadas há tempos por eles, com quedas claras ano após ano. No primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), por exemplo, foram 109 terras homologadas, sendo 34 nessas quatro regiões; no segundo, 32, 17 em regiões fora do Norte. Luís Inácio Lula da Silva (PT), por sua vez, homologou 65 terras em seus primeiros quatro anos de governo, 42 do Norte, enquanto, nos últimos quatro anos, apenas 19, 13 delas no Norte e apenas uma no Centro Oeste – a última na região, em 2009.
Em nota enviada ao iG, o Ministério da Justiça defende a política indigenista, afirmando que o "Estado brasileiro regularizou, até junho de 2014, 400 terras indígenas destinadas à ocupação tradicional de diferentes povos, o que corresponde a aproximadamente 105 milhões de hectares – cerca de 12% do território nacional". No entanto, não esclarece o motivo para o governo Dilma ter paralisado os processos, apenas afirmando que, junto à Funai, tem realizado nos últimos anos "esforços para a regularização das terras indígenas localizadas fora da Amazônia Legal, em áreas onde se concentram altos indíces de confinamento territorial de indígenas".
Para o professor Pimentel, o posicionamento do governo escancara uma incapacidade em lidar com a questão dos índios, bem como uma descontinuidade na atenção dos governos aos problemas a eles relacionados. "Da forma como funciona hoje o nosso sistema político, o governo está no colo dos ruralistas, está de mãos atadas", avalia ele. "Não é à toa que vemos no País inteiro dezenas de grupos tentando recuperar suas terras por meio de ocupações, já que não os meios institucionais não têm funcionado. É algo necessário, pois, para as lideranças, para os xamãs, o remédio para solucionar a questão da violência é muito claro: a recuperação das terras."