Quem mexeu nas ‘Memórias do cárcere’

Filiado ao Partido Comunista, pelo qual chegou a ser candidato a deputado federal, o escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) nunca permitiu que questões partidárias interferissem em sua literatura. Essa atitude independente, presente em cada um de seus livros, é o mote central dos debates da Festa Literária Internacional de Paraty (a Flip), que acontecerá no próximo mês e homenageará Graciliano com mesas de discussão e leituras. O tema também põe em evidência uma polêmica antiga, que manchou a trajetória de uma de suas obras mais importantes, Memórias do cárcere. Desde que foi lançado, pesa sobre o livro a acusação de ter sido adulterado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Uma denúncia que nunca foi completamente comprovada e ainda ecoa, até nos meios acadêmicos. Até que ponto Memórias do cárcere seria um texto legítimo?

O livro foi publicado no final de 1953, oito meses depois da morte de Graciliano. Ele apresenta um relato contundente, em que descreve o período de um ano que passou encarcerado pela ditadura de Getúlio Vargas, de março de 1936 a janeiro de 1937. Mantém sua independência e visão crítica da realidade. Por esse motivo, a acusação de que o partido teve acesso aos originais, trocou adjetivos e suavizou passagens controversas foi inicialmente recebida com descrença.

A insistência com que a denúncia foi levantada semeou a dúvida no meio literário. Como consequência mais desastrosa, provocou também um racha na família de Graciliano, com uma briga pública entre a filha Clara Ramos e o filho Ricardo, responsável pela publicação do livro. Eles morreram sem se falar. Nas últimas três semanas, com a ajuda dos professores Vanda Cunha Nery, da Universidade Federal de Uberlândia, e Godofredo de Oliveira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e do pesquisador Thiago Mio Salla, da Universidade de São Paulo (USP), ÉPOCA mergulhou nos originais de Memórias do cárcere, para colocar um ponto final no caso.

Tratava-se um livro importante para os comunistas, pois deveria ser uma obra-chave sobre a Intentona Comunista de 1935. Depois da morte de Graciliano, foi noticiada uma visita que Astrojildo Pereira, um dos fundadores do PCB, fez a sua família. Astrojildo argumentava que, por se tratar de uma obra política, o livro precisava da aprovação da cúpula do PCB, que faria eventuais mudanças e supressões. A família não concordou. Os comunistas já haviam lido alguns capítulos, publicados em jornais, e estavam indóceis. Agildo Barata, um dos líderes do PCB, achou ridículo ser retratado como um sujeito baixinho e de fala fina. Também não havia o tom de manifesto político que os comunistas esperavam, mas um mergulho profundo no drama humano de pessoas confinadas em condições adversas.

Graciliano não sabia bater à máquina, e os originais entregues à editora estavam datilografados. Havia suspeitas de que o partido ajudara nessa tarefa, aproveitando para corrigir o texto a seu contento. O livro foi lançado meses depois pela editora José Olympio. Era ilustrado com imagens de sete páginas manuscritas por Graciliano. Tais manuscritos meramente ilustrativos aguçaram a curiosidade do crítico literário Wilson Martins (1921-2010). Ele teve a ideia de compará-los com os capítulos impressos. Martins percebeu que havia diferenças e, num artigo publicado um mês depois da primeira edição, no jornal O Estado de S. Paulo, acendeu o debate. “Infelizmente estas memórias, na edição atual, não merecem confiança”, escreveu. Martins dizia entender a gravidade do que afirmava e que, na comparação que fez dos manuscritos com a versão impressa, ficava evidente que o texto original de Graciliano não fora seguido. Eram mudanças apenas estéticas, mas davam margem a suspeitar de outras alterações mais profundas, de cunho ideológico. “Julgamentos sobre o Partido Comunista, por exemplo, ou sobre homens ou ideias pessoais de Graciliano Ramos não teriam também sido modificados ou suprimidos?”, questionou Martins.

O livro sustenta um tom anticomunista. Ridiculariza tanto a revolução como seus heróis. Mesmo conhecendo o conteúdo da obra, Martins manteve sua acusação até o fim. Argumentava que Graciliano poderia ter sido ainda mais severo com os comunistas. Uma série de intelectuais escreveu artigos defendendo a veracidade do texto. O filho Ricardo Ramos (1929-1992) também veio a público expressar seu repúdio à denúncia. A polêmica poderia ter arrefecido aí, com o desmentido da família. Ganhou um novo capítulo em 1979, desta vez mais doloroso. Clara Ramos, a filha mais nova de Graciliano, localizou na editora José Olympio sete capítulos inteiros manuscritos por Graciliano. Algumas páginas eram aquelas usadas como ilustração na primeira edição do livro. O restante do material, ainda inédito, também tinha diferenças em relação ao texto publicado.

Com esses capítulos nas mãos, Clara travou uma briga pública com o resto da família. Na ocasião, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma reportagem com o título: “As memórias que Graciliano não escreveu”. Clara acusava a mãe, Heloísa, e o irmão Ricardo de ter permitido a interferência na obra do pai. Cobrava deles a entrega dos outros capítulos manuscritos. Clara morreu em 1993, aos 71 anos, sem ter se reconciliado com os familiares. Ela ainda acreditava que o livro fora alterado pelos comunistas. “Mais uma vez tenho consciência de minha precariedade. Relaciono num livro as implicações do caso, assino embaixo, deixo o caso registrado, a solução nas mãos de Deus”, escreveu em seu último livro, Cadeia, publicado um ano antes de morrer.

Na ocasião, Ricardo Ramos também publicou o livro de memórias, Retrato fragmentado, em que contou sua versão da história. Ele afirmava que Graciliano escrevia e reescrevia os capítulos à mão, sempre perseguindo a expressão mais sucinta. Portanto, era de esperar a existência de versões diferentes do livro. Em seguida, ele passava o texto para Heloísa Ramos datilografar. Todos os meses Graciliano entregava três capítulos datilografados ao editor José Olympio. Ele os guardava num cofre. Não poderia haver intermediários.

Para esclarecer o caso, desde então em aberto, um trabalho foi realizado há alguns anos pela pesquisadora Vanda Cunha Nery. Em sua tese de doutorado em comunicação na PUC de São Paulo, Vanda reuniu todas as versões do texto e fez uma comparação entre elas, que os estudiosos chamam de crítica genética. Ela também verificou como as várias versões apareciam no livro publicado. Memórias do cárcere tem dois esboços e uma versão completa manuscrita, guardados na USP. Também existe a versão datilografada, na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. “Comparei linha por linha e posso garantir que não houve nenhuma alteração significativa no texto. Mesmo na versão datilografada, há correções com a letra de Graciliano”, diz a pesquisadora.

Já seria um desmentido poderoso. Mas ele não encerrou o assunto, porque Vanda não analisou os sete capítulos em poder de Clara Ramos, hoje nas mãos da filha dela, Luciana. No final da vida, Clara dizia que esses sete capítulos traziam alterações que sugeriam a existência de uma nova versão da obra, a definitiva, cujos outros originais estavam desaparecidos. A história é repetida até hoje. ÉPOCA analisou esses manuscritos com a ajuda de Godofredo de Oliveira, professor da UFRJ. Ele descobriu que toda a polêmica estava fundada num erro: os sete manuscritos não são originais do livro, mas versões alternativas de capítulos, que Graciliano publicou na imprensa daquele tempo.

Com a ajuda do pesquisador Thiago Mio Salla, organizador do livro Garranchos, foi localizado cada um dos capítulos publicados na imprensa. Eles saíram no Correio da Manhã, no Diário Carioca e na revista Temário. Os textos nos jornais são idênticos aos dos manuscritos guardados por Clara. Isso revela que tais originais foram produzidos unicamente para esse fim e anula a possibilidade de outra versão para a obra. “Foi uma polêmica sem razão de ser, mas que provocou uma briga na família”, diz Ricardo Ramos Filho, neto do escritor.

Wilson Martins e Clara Ramos foram induzidos ao erro, porque a imagem dos manuscritos destinados à imprensa foi publicada na primeira edição da José Olympio, como se fossem de originais do livro. A denúncia ganhou força diante do histórico de orientação ideológica e controle que o PCB exercia sobre seus autores. “Era uma polêmica antiga, mas que nunca teve um desfecho”, diz Godofredo. Ao completar 60 anos, a história aparentemente ganhou seu ponto final.

Fonte: G1/Época

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