Constrangido, acuado e triste, volto a falar de um assunto que não gosto, me incomoda. O palco e a cena principal é exatamente a nossa terra Anadia, onde a paz imperava e sempre brotaram coisas boas. Ultimamente tem sido o contrário, na maioria notícias más, tristes.
Hoje, vou contar o que nunca antes tinha tornado público! Em pleno janeiro – Mês da festa da padroeira de Anadia, a novena estava começando, o barulho de fogos e do sino dava o ar solene na noite da novena, em nossa casa, meu avô Zeferino Fidélis recebia um primo das bandas da Pindoba. Após o jantar meu pai ficou encarregado de levar o parente até o carro que estava estacionado no outro lado da praça Dr. Campelo, em frente a casa do seu Zequinha Farias, lá estava o caminhão Ford – 1966, amarelo novinho.
“É bala, Daura! É bala, Daura! É bala, Daura!” Eram esses os gritos de pavor e medo que minha mãe repetia para minha querida tia!
O que vocês vão ouvir agora me custa caro contar. Esse sentimento de medo me acompanha a vida toda, Sou terminantemente contra qualquer tipo de violência. Os personagens dessa história estão inseridos na minha vida, guardados no lado esquerdo do meu peito.
Lá estou eu acompanhado do meu pai e seu primo, atravessando o cenário da festa de Nossa Senhora da Piedade, as pessoas rodando em círculos, a animação natural da festa de interior e outras lindas recordações que agora não dá pra contar.
Antes de chegarmos ao caminhão, um principio de confusão acontecia em frente ao Bar do tio Miguel Elísio, uma briga envolvendo a polícia local, pelo menos oito policiais, batiam pra valer num pobre homem. Meu pai sempre foi avesso à violência, num gesto impulsivo se aproximou, ao reconhecer que se tratava do Vicente Melo, seu vaqueiro, quem levava a surra, pediu ao delegado que parasse e perguntou por qual motivo aquilo estava acontecendo.
A resposta da autoridade policial não foi muito conclusiva, limitou-se apenas a dizer que era porque o dito cujo, andava bêbado e provocando as pessoas. E a partir daquele instante sanou-se a sova, meu pai levantou o Vicente Melo pelos braços e falou que ia levá-lo embora, deixá-lo em casa. Não houve nenhum questionamento por parte da polícia e tudo caminhava para o final do furdunço.
Quando notou que estava livre de ser preso, o Vicente Melo adquiriu alma nova, força nas pernas e ganhou o rumo de casa sem precisar de ajuda. Alí, naquele momento estava tudo em paz, mas de repente, um policial conhecido por Bigode, interpelou o primo do meu pai e perguntando: seu nome é Moura? Logo recebeu a confirmação: Sim, sou! Por quê? O bigode foi logo emendando, foi você que namorou a minha irmã Núbia? Moura disse que não e que estava ocorrendo um engano.
Demos as costas para o destacamento policial e caminhamos para o caminhão, agarrado nas mãos do meu pai, eu com apenas seis anos de idade, comecei naquele momento a vivenciar a violência e seus efeitos. Foi ligado motor do caminhão, o primo Moura já estava sentado ao volante, apenas se despedia e começava a se preparar para manobrar o veiculo. Do nada se escuta um estampido, que se repetiram inúmeras vezes.
A minha lembrança só permite contar que não sei como, com certeza um milagre de Deus, Levou-me a ficar atrás dos pneus traseiros do caminhão, amparado, protegido e, que quando cessou a barulheira infernal, fui resgatado pelo seu Pedrinho do Fomento – dono dos trivolins da festa.
Dói relembrar – Não os ralhões nos joelhos, que logo sararam, mas a terrível lembrança, o pavor e o medo, a ausência, de não saber onde naquele instante estava meu pai, angustiante a terrível sensação de pensar que o tinha perdido. Num transloucado gesto dos policiais, que deixaram totalmente crivado de balas o Ford amarelo do Moura.
Foi intervenção divina, volto a dizer, que nos livrou eu, meu pai e o primo Moura, de sermos atingidos por mais de duas centenas de balas. Pasmem! Isto tudo acompanhado do atento olhar do meu avô Zeferino Fidélis, que da janela da sua casa assistia a brutal cena. E seu Zifi, como carinhosamente era chamado pelo povo de Anadia, que o conduziu aos honrosos cargos de vereador e prefeito, teve uma maestral condução após o episodio.
A revolta era geral na cidade, todos queriam uma ação enérgica contra o bárbaro policial e o destacamento, um verdadeiro barril de pólvora, que com muita calma, paciência e ação em direção à paz – Pelo Zifi, foi colocado um ponto final.
Não é filme, nem tampouco uma nova invenção minha. Tudo real! Verdadeiros eram os gritos que ecoavam estridentes da sala da nossa casa, minha mãe em aflição a dizer e repetir pra minha querida tia Daura: “É bala Daura! É bala Daura! É bala Daura!”.
Doloroso é ouvir outra vez, depois de tantos anos, minha mãe pelo telefone a me dizer “É bala meu filho, muita bala aqui em Anadia”.
(*) Ex-secretário de Estado e filho de Anadia