A recente chacina na sede do jornal Charlie Hebdo, em Paris, transformou, para muito pior, a vida de brasileiras muçulmanas. Religiosas de São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso sofreram violências de diferentes níveis – foram apedrejadas, cuspidas, ignoradas no transporte público e alvos de piadas maldosas nas ruas -, nos dias seguintes ao ataque em uma onda de islamofobia que se opõe frontalmente à imagem brasileira de país multireligioso e pacífico.
Um dia após a invasão do jornal parisiense, os ataques ganharam força similar aos milhares de compartilhamentos “Je suis Charlie” nas redes sociais. A Mesquita Brasil, maior templo da religião no País, amanheceu pichada na capital paulista. Horas depois, no interior de Minas Gerais, A.P.B., de 27 anos, foi cuspida por uma pessoa enquanto brincava com o filho de seis anos no clube da sua cidade. “Assassina! Ninguém quer você aqui”, gritou o agressor. Assim como em outros ataques diários, A. abaixou a cabeça e ouviu aos xingamentos calada.
Apenas uma semana depois, Sarah Ghuraba, de 27 anos, caminhava para uma consulta médica na periferia de São Paulo quando sentiu um forte impacto na perna. “Muçulmana maldita”, disse um desconhecido. A frase veio acompanhada com uma grande pedra. "Alhamdulillah [graças a Deus] pegou na minha perna", pensou a mulher. Ao iG, ela garantiu que não foi seu primeiro ataque – e imagina que não será o último. “Será que uma muçulmana brasileira precisa morrer para entenderem que existe islamofobia no Brasil?”, questionou, ressaltando que o tema deveria ser tratado com a mesma importância dada aos casos de xenofobia e homofobia.
Sarah divulgou o ocorrido em sua página do Facebook para alertar outras irmãs que costumar sair sozinhas de casa porque “cuidamos uma do caminho da outra”. “Recebi muitas mensagens solidárias, mas também recebi um monte de ameaças. Falaram que eu deveria ter levado um tijolo na cabeça e outros prometeram terminar o trabalho. É assustador”. Para ela, as pessoas não conhecem o islã, mas acreditam fielmente que é uma religião de terroristas e assassinos. “O problema são as pessoas mais desinformadas, que desconhecem nossa religião e formam opinião pelo que assistem na televisão”, avaliou A.P.B.
Halimah Farah, de 26 anos, aderiu ao islamismo há um ano, mas já coleciona experiências de intolerância religiosa em Cuiabá, no Mato Grosso. Apedrejada em abril do ano passado, à época do sequestro de 276 alunas na Nigéria, protagonizado pelo grupo extremista Boko Haram, a vendedora entrou em estado de alerta após a chacina em Paris. Uma corriqueira ida à escola para buscar o filho mais velho virou um pesadelo. Halimah e os pequenos Marcelo e Gabriel, então de 8 e 6 anos, viraram alvos da ignorância.
“Só abaixei a cabeça, protegi meus filhos e saí correndo. Daquela vez foram pedras, amanhã pode ser um tiro ou atropelamento”, disse ela, comentando que Marcelo chegou a ser atingido na cintura. O episódio marcou a família ao ponto de a vendedora desistir de caminhar 400 metros com o filho até a escola novamente. A saída foi contratar o serviço de van para evitar “toda a provação e provocação” nas ruas.
Olhares tortos, piadas e ‘Namastê’
A., Sarah e Hamilah têm endereços diferentes, mas em comum carregam as crenças no profeta Muhammad (Maomé) e despertam a atenção nas ruas pelas vestes hijabs e abayas, os véus e túnicas que cobrem o corpo, que é sempre guardado aos maridos, como Allah [Deus, em árabe] orientou no sagrado livro Alcorão. "A beleza da mulher muçulmana é a sua fé, não as características externas", pondera Halimah. Caminhar pelas ruas e lidar com olhares tortos já faz parte do cotidiano de muçulmanas, e muitas vezes, não é mais percebido. Eles só incomodam quando chegam acompanhados com barulhos e gritos de Insha’Allah (se Alá quiser), que ficaram famosos na novela “O Clone”, produzida pela TV Globo, em 2001.
O trio acredita que as pesadas críticas contra ao islamismo são reflexos da desinformação da população. “Muitos não sabem que brasileiros podem aderir ao islã. Muitos pensam que só árabes são muçulmanos”, contou A., convertida há dez anos e que ainda estuda a religião para se tornar uma melhor divulgadora do islamismo. Ela relatou que foi confundida inúmeras vezes como estrangeira por usar o véu. “Sempre recebo Namastê [saudação usada por budistas] ou sou atendida com um português extremamente lento. Aviso que sou brasileira e ficam chocados. Já até perguntaram se eu estava virando uma mulher-bomba.”
Sarah falou que a curiosidade na rua não incomoda e que até gosta quando desconhecidos perguntam educadamente sobre suas vestes. Afinal, segundo todas as entrevistadas, a pergunta pode ser uma abertura para o ensino do verdadeiro islamismo. “O islã é uma religião monoteísta. Nós amamos Jesus Cristo e esperamos o seu retorno. Maria, a mãe de Jesus, é uma das cinco mulheres mais importantes no paraíso. Quem fala que o islamismo é terrorismo deveria conviver conosco”, sugeriu Sarah, revelando que conceitos básicos do cristianismo são respeitados pelos seguidores de Maomé.
Segundo ela, que dá aulas de teatro em uma escola a jovens do Jardim Ibirapuera, periferia paulistana, se a sua religião pregasse apenas o terrorismo, o mundo seria tomado pelo caos e guerra. “Somos 1 bilhão pelo mundo. Islã é paz, sossego e felicidade”, explicou com tom alegre na voz. A professora criticou ainda o radicalismo no Oriente Médio, pois isso mancha a comunidade. E completou: “O que eles fazem é proibido e chega a ser um haraam [pecado]”.
Preconceito dentro e fora de casa
Escolher o islamismo como nova religião foi uma afronta para as três famílias católicas. Tanto Halimah como A. conheceram os ensinamentos do profeta ainda muito jovens, com 12 e 17 anos, respectivamente, pelos amigos da escola. Já Sarah deixou os estudos para virar freira há quatro anos por não ter respostas sobre o Alcorão das lideranças na igreja. As três encontraram forte resistência e preconceito dentro de casa. A., por exemplo,começou a usar o véu e quase foi proibida pela mãe de prestar a segunda fase do vestibular. O momento não era o mais apropriado, ela reconheceu. O atentado de 11 de setembro havia acabado de completar um ano. “Foi o momento mais difícil para ser uma muçulmana.”
Aos poucos, as três conquistaram os respeitos dos familiares mais próximos e cortaram a relação com outros que ainda as descriminam. “O sheik me ensinou a lidar com a rejeição da minha família. Quando ela reclamava do véu ou das orações, eu a abraçava. Nunca rebatia. Allah não estima agressores. Mostrei para a minha família como o islã realmente é. Os mais próximos aprenderam e hoje respeitam”, comemorou A.
Quando a submisão e os abraços não encerram as críticas, a solução é se afastar. "Eu até ria no começo, quando falavam que eu estava louca e tinha virado terrorista. Mas cansei de ouvir isso. A muçulmana enfrenta o pior dentro e fora de casa", desabafou Halimah.