O apartamento de sala e dois quartos, de 42 metros quadrados, construído para abrigar uma família de baixa renda na comunidade de Manguinhos, ganhou na fachada um letreiro que mostra seu novo uso. Em letras vermelhas, pintadas sobre a fachada amarela, está escrito “Casa de oração”. Transformado em igreja evangélica, o imóvel é uma das unidades do conjunto habitacional do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), erguido na Avenida Dom Hélder Câmara, que hoje é utilizado para outros fins e não para moradia, o que é vedado pelas regras do projeto.
Além da unidade — originalmente um dos apartamentos adaptados para pessoas idosas ou portadoras de deficiência — transformada em igreja, o conjunto tem moradias que viraram lojas. No mesmo bloco da “Casa de oração”, um apartamento foi transformado em bar. Ganhou uma cobertura na frente, onde ficam expostas geladeira com propaganda de cervejaria, garrafões de água mineral e outros produtos.
Pelas regras do PAC, nos primeiros cinco anos de uso dos imóveis, os beneficiários recebem uma autorização provisória de ocupação. As unidades não podem ser vendidas ou alugadas durante esse tempo. Além disso, a estrutura não pode ser alterada e a abertura de comércio é proibida. Após cinco anos, são expedidas as escrituras definitivas dos imóveis.
A utilização de apartamentos do PAC para fins comerciais já foi constatada antes em Manguinhos. Uma matéria publicada pelo GLOBO em agosto de 2010, antes mesmo de o conjunto ser inaugurado oficialmente, mostrou o problema. Na ocasião, assistentes sociais visitaram as residências onde eram realizadas atividades comerciais e cadastraram os moradores. Eles passariam a ocupar quiosques que seriam construídos no local. Os quiosques, no entanto, ainda não foram erguidos. E ninguém foi punido.
Inaugurado em 2010 pelo então presidente Lula, o conjunto habitacional do PAC em Manguinhos tem 396 apartamentos. A execução das obras, que levaram dois anos, custou aos cofres públicos cerca de R$ 53 milhões. O principal objetivo do projeto era beneficiar duas mil pessoas que viviam em áreas carentes da região.
Cercado por favelas, o conjunto ainda sofre a influência de traficantes. Uma operação da Polícia Civil realizada em novembro do ano passado destruiu um ponto de venda de drogas montado num dos acessos aos edifícios. Na época, denúncias feitas à polícia informavam que traficantes também estariam cobrando dos moradores uma “taxa de segurança”.
O governo do estado, responsável por fiscalizar o uso dos imóveis nos primeiros cinco anos de ocupação, informou que já tomou conhecimento das irregularidades e acionou a Polícia Civil. Equipes da Delegacia Fazendária estão investigando o caso para indiciar e punir os responsáveis pelo uso irregular dos imóveis, não só em Manguinhos, como também no Complexo do Alemão.
— Estamos ouvindo pessoas envolvidas no uso irregular dos imóveis. O inquérito deve ser concluído em dez dias e depois será encaminhado para o Ministério Público — afirmou o delegado titular Ângelo Ribeiro.
Além da utilização de imóveis para fins não habitacionais, a polícia investiga a comercialização e a locação dos apartamentos, que estariam sendo vendidos por até R$ 60 mil em Manguinhos, no Complexo do Alemão e na Rocinha. Um dos acusados de participar das vendas de imóveis do PAC é o líder comunitário Wagner Bororó, candidato a vereador pelo PSB, flagrado em reportagem do “Jornal Nacional”, da TV Globo, cobrando porcentagem pela negociação de apartamentos do programa no Alemão.
A irregularidade em Manguinhos inspirou um projeto de lei complementar, publicado no Diário Oficial da Câmara dos Vereadores na última segunda-feira. A proposta do vereador Carlos Alberto Bencardino (PTC) prevê que qualquer novo loteamento ou empreendimento imobiliário do município só deverá receber habite-se caso seja reservada uma área para a construção de templos religiosos.
O parlamentar justifica a ideia citando a adaptação de imóveis do PAC em Manguinhos. “É fundamental que o espaço dos seguimentos religiosos seja assegurado nas implantações de novas comunidades urbanas, seja em loteamentos ou em empreendimentos imobiliários. A difusão dos preceitos religiosos deve acompanhar o crescimento e a expansão habitacional de forma simplificada e ordeira, realizada a partir do direito de ocupação”, sustenta o vereador em seu projeto, que classifica os templos religiosos como “equipamentos sociais”. Embora ainda esteja em tramitação inicial, a proposta recebeu duras críticas de outros vereadores.
— Nunca vi nada mais estapafúrdio. Parece até piada. Infelizmente esse projeto vai tramitar, será analisado — disse a vereadora Andrea Gouvêa Vieira (PSDB).
Vereadores das bancadas evangélica e católica procurados pelo GLOBO preferiram não comentar o projeto. A vereadora Teresa Bergher (PSDB) contou que entrará com uma emenda retirando do texto a obrigatoriedade de reserva de área para templos:
— O vereador deveria estar preocupado em reservar áreas para creches, escolas.
O vice-presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil, Pedro da Luz, também fez críticas.
— O Estado deve prover os equipamentos básicos, como escolas, creches, hospitais. As igrejas devem comprar seus imóveis a partir de iniciativa própria. Não tem sentido fazer reserva em área pública. O projeto de lei é irracional do ponto de vista do Estado laico, que não deve se envolver com as religiões.
Segundo o autor do projeto, a ideia foi abrir o debate sobre o tema:
— A apresentação do projeto de lei é que institui o verdadeiro debate sobre o tema apresentado. Espero que a discussão não fique restrita ao universo dos vereadores.