"Eu ouvi sinos, no meu primeiro beijo", disse ela. Achei a declaração estranha, mas aos 14 anos, qualquer declaração de um adulto pode parecer estranha. Por longo período, fiquei imaginando como alguém poderia ter ouvido sinos se a única igreja da cidade sequer tinha badalo.
Por isso fiquei remoendo a frase, no afã de descobrir de onde diabos viria o som do instrumento. Da igreja é que não era, pensei. Até que um dia, meu melhor amigo se enamorou de uma menina do bairro e me convidou para ir a uma festa com os dois.
Aceitei, claro, mas antes teria de pedir permissão ao meu pai, um rígido controlador das minhas saídas na adolescência. "Por ser o mais velho, teria que ser o exemplo para os demais irmãos". Isso ele não me deixava esquecer. Então, se dissesse que era para estar em casa às 22h, que eu não me atrevesse passar um minuto, sob pena de ser castigado.
Nunca soube o tipo de castigo porque nunca cheguei depois do horário combinado. Nem que para isso tivesse que sacrificar algumas aventuras. Mas isso era um ponto a meu favor. Por nunca descumprir ordens, sempre recebia sinal verde. E até eu ficar maduro, tive que respeitar isso. Talvez venha daí o fato de eu detestar relógio. "Não vejo a hora de eu ficar adulto", suspirava.
E fui feliz à tal festa, lembrando que teria de retornar dentro do horário estipulado. Encontrei o meu amigo aos beijos com a nova namorada. Imediatamente, lembrei da história dos sinos. Juro que apurei os ouvidos na tentativa de ouvir rescaldo de bronze tinindo. "Se com um beijo a moça disse que ouvia, com vários é capaz de quem estar por perto sentir pelo menos uma badalada", cogitei.
Até que, do meio do nada, apareceu uma menina linda, com um sorriso que parecia uma poesia de Neruda (naquele tempo eu ainda não conhecia o Neruda. A comparação, portanto, é atual). Seu olhar me lembrava o de uma fada (naquele tempo, fada era tudo o que eu conhecia). E imediatamente me lembrei da Sininho do Peter Pan. "Será que em vez de ouvir sinos, Deus me deu o poder de vê-los?", pensei. "Esta é minha cunhada", disse o meu amigo. E imediatamente me senti enamorado. E antes que alguém dissesse algo, pensei em falar com o padre para consertar o sino da matriz o mais rápido possível.
Vai que eu fosse precisar dele em breve. Passei o resto da festa sem tirar o olho da menina, louco para ter coragem de tirá-la pra dançar. A hora avançava, o tempo que meu pai me dera estava acabando, e nada de oportunidade. Até que a namorada do meu amigo veio até mim e cochichou no meu ouvido: "minha irmã está louca para dançar com você". Tremi. Esperei a música certa, tomei coragem e fui lá, o coração batendo atravessado.
Ficamos dançando por muito tempo, eu rezando para o padre já ter posto o sino no lugar – quem sabe o meu primeiro beijo repetiria a história da moça que ouvira um dia. Em determinado momento, muito vagarosamente, nossas bocas se encontraram num beijo inexperiente. Nesse momento, não ouvi mais nada. Senti apenas uma dor profunda na orelha esquerda. Era meu pai, furioso porque eu passara do tempo há horas e resolvera ir me buscar no punho. Nunca mais soube da menina. E juro: no meu segundo beijo, ainda olhei pros lados pra ter a certeza de que estava a sós com a garota.