Quando o abolicionista Joaquim Nabuco disse no século 19 que a escravidão no Brasil permaneceria por muito tempo como uma característica nacional, certamente já antevia a herança do preconceito refletida nos níveis de desigualdade social e econômica, que no futuro castigaria muito mais negros do que brancos.
Submetida a uma intensa desigualdade de oportunidades, a população negra no país corresponde a mais da metade dos pobres e miseráveis. Segundo o Censo 2000 do IBGE, em Alagoas, a raça negra corresponde a 67% da população do Estado. “Estão inseridos neste percentual os indivíduos de cor parda e preta”, esclarece o secretário de Minorias Étnicas, Zezito Araújo.
“Os negros são a maioria na pobreza e na indigência”, descreve o professor de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ricardo Henriques, citando dados da Pesquisa Nacional Por Amostragem de Domicílios (PNAD). A pesquisa, divulgada no final da década de 90, indica que, ao nascer de cor parda ou preta são significativamente maiores as probabilidades de um brasileiro ser pobre.
Pesquisador especializado em desigualdade, pobreza, racismo, avaliação de políticas sociais e Terceiro Setor, Henriques defende que a agenda de pesquisas e políticas públicas para o enfrentamento da desigualdade tenha como implicação necessária a compreensão da desigualdade racial.
“Mudar a natureza da desigualdade econômica e social no Brasil passa, portanto, de forma prioritária, por mudar a desigualdade racial”, reflete.
Herança cultural
O Brasil foi o último país no mundo a abolir a escravidão. Entretanto, o término do sistema de exploração do trabalho escravo não representou o fim do da discriminação racial. Escravos “livres” tornaram-se prisioneiros de uma sociedade discriminatória. Sem vez e voz, deslocados, transformaram-se nas maiores vítimas de um tipo de violação de direitos ainda mais grave, o ‘racismo facial’.
“A sociedade brasileira tem esse preconceito facial há séculos. Para muitos, basta ser negro para tornar-se suspeito. Quando vamos deixar de ver anúncios de empregos pedirem pessoas de ‘boa aparência’?”, questiona indignado o maranhense Jaime Fortunato de Pais, autor de um dos textos premiados pela coletânea de Direitos Humanos, publicação editada pela Unesco e Ministério da Justiça.
“Vivemos em uma sociedade que se diz não racista, convivemos contraditoriamente com a necessidade de leis para que o racismo seja amenizado. Se é preciso proteger vagas com leis, esse é um sinal claro e evidente de que nesse país o negro ocupa posições inferiores”, escreve o autor.
Para muitos historiadores, a escravidão no Brasil apenas mudou de figura. A sociedade moderna convive com a herança cultural do escravismo tentando ignorá-lo, sem coragem para assumir o ônus pela situação econômica e social desfavorável em que a população negra se encontra.
Testemunhamos cotidianamente o ‘racismo light’, disfarçado em piadinhas de ‘humor negro’, teimamos em criticar atitudes racistas, desconhecendo ou fingindo perceber, o quanto contribuímos para esta realidade atual. Se convivesse nos dias de hoje, Joaquim Nabuco certamente diria : ainda não aprendemos a curar as feridas deixadas pela escravidão.