Três disparos certeiros, que se confundiram com o apito da fábrica de tecido, mataram há 88 anos o empresário Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, o primeiro a fazer investimentos fora da área canavieira de Alagoas e também o pioneiro na concessão de crédito agrícola e na produção de energia elétrica – a atual cidade que leva seu nome, no extremo oeste alagoano, foi a primeira no Nordeste a ser iluminada por energia hidráulica. O assassinato de Delmiro virou tabu; quase cem anos depois o crime permanece insolúvel e os que foram acusados e condenados acabaram inocentados.
Há várias versões para o assassinato do empresário, que era considerado uma pessoa de temperamento difícil; mulherengo, não se importava se a mulher fosse casada ou muito mais nova do que ele, como ocorreu com a sobrinha do governador de Pernambuco, Agamenon Magalhães.
Cearense radicado no Recife, Delmiro era casado e tinha mais de 40 anos quando raptou a sobrinha do governador, de apenas 15 anos, to
rnando-se protagonista de um escândalo na sociedade pernambucana no começo do século passado. A partir daí, Delmiro passou a sofrer perseguição política e viu seus negócios ruírem – literalmente – em chamas.
O INCÊNDIO
Delmiro fez fortuna como corretor de peles e de algodão para uma firma norte-americana instalada em Recife; escolhido o melhor corretor, ganhou como prêmio uma viagem aos Estados Unidos – foi lá que ele conheceu uma usina hidrelétrica no Mississipi. Delmiro levou pouco tempo para passar de empregado a empresário; no começo do século XX ele montou o “Parque do Derby”, o primeiro shopping center da América do Sul, dotado de cinema, mercado, hipódromo, ciclovia e praça de alimentação.
O empreendimento reuniu a nata da sociedade nordestina, mas teve final trágico; os amigos e setores da imprensa identificaram no incêndio a perseguição política, reflexo do escândalo amoroso, mas a polícia, que seguia a orientação do grupo político do vice-presidente da República, Rosa e Silva, o indiciou por crime, alegando que Delmiro foi o responsável pelo sinistro.
A idéia era mostrá-lo como empresário inescrupuloso, que ateou fogo no estabelecimento para se livrar do pagamento dos credores e ainda receber o seguro. Delmiro atraiu ainda mais a ira dos seus adversários políticos, quando agrediu o vice-presidente Rosa e Silva num encontro casual no centro do Rio de Janeiro.
FUGA EM ALAGOAS
Em 1904, Delmiro veio para Alagoas; os filhos dos “coronéis” políticos alagoanos, que estudavam em Recife, tornaram-se seus amigos; um desses coronéis, Ulisses Luna, de Água Branca, convidou-o para conhecer a região e facilitou a negociação da fazenda Buenos Aires, onde havia a estação ferroviária.
Delmiro viu ali um grande negócio e comprou o imóvel; imaginou montar uma hidrelétrica para mover a fábrica de tecidos. Antes, tratou de montar a infra-estrutura para incentivar a produção de algodão e peles.
Delmiro montou um mini-banco e financiou a produção, concedendo créditos com a garantia apenas da entrega da safra. Ao mesmo tempo, cuidou da implantação da Vila Operária, que contava com saneamento, abastecimento d´agua e energia elétrica fornecida pela Usina de Anjiquinho, com capacidade de 50 HP, suficiente para iluminar uma cidade de 5 mil habitantes. Para garantir a água, Delmiro construiu o açude ainda hoje importante para o abastecimento da população da cidade de Delmiro Gouveia.
A CONCORRÊNCIA
O negócio prosperava; a Agro-fabril Mercantil, a fábrica de Pedra, o povoado que virou cidade e ganhou o nome do seu benfeitor, passou também a produzir linhas de coser. A partir daí, começaram os problemas do empresário Delmiro Gouveia com a multinacional Machine Cottons, a fábrica inglesa que produz a Linha Correntes, ainda hoje predominante no mercado na América Latina.
A linha produzida pela fábrica alagoana chamava-se Estrela e Delmiro conseguiu colocá-la no Chile, mas, quando tentou entrar na Argentina foi surpreendido com a informação de que já havia uma linha com esse nome.
A Machine Cotton tentou várias vezes comprar a fábrica de linhas de Delmiro; em vão, ele recusou todas as ofertas.
A concorrência se aguçou e se tornou um dos motivos de especulação para o motivo da sua morte, principalmente porque, logo após ser assassinado, emissários ingleses estiveram na fábrica alagoana e compraram finalmente o maquinário; depois, atirou a engenhoca no Rio São Francisco – da última vez que tentaram retirar o maquinário, em 1988, ele estava a 70 metros de profundidade, o que tornou a operação arriscada; o maquinário seria içado por helicóptero.
OS PATETAS
Como o assassinato não poderia ficar sem uma satisfação, foram indiciados três suspeitos, logo identificados como “bodes expiatórios” – um deles viveu até 1983, em Maceió, e foi considerado depois inocente graças a um álibi (telegrama) localizado pelo pesquisador Moacir Sant`Anna.
Chamava-se Róseo Moraes do Nascimento, foi condenado a 30 anos de prisão, apesar de o telegrama que garantia que ele, no dia do crime, 17 de outubro de 1917, se encontrava na cidade sergipana de Propriá, distante mais de 200 quilômetros do local do crime.
Os outros dois acusados foram mortos pela polícia, numa tentativa de fuga. Um deles, Jacaré, tinha ficha criminal suja – cumpriu pena por homicídio. Mas, as suspeitas nunca foram esclarecidas; dois coronéis políticos da região, um deles de Piranhas e outro de Jatobá (hoje Petrolândia-PE) chegaram a ser citados como interessados na morte de Delmiro. Foram eles: José Rodrigues e José Gomes.
Eles foram citados, mas não chegaram a ser intimados pela polícia e seus nomes caíram no esquecimento. Delmiro foi assassinado às 21 horas e o pistoleiro cronometrou o atentado, para fazer os disparos da sua arma coincidir com o apito da fábrica anunciando o final da jornada de trabalho.