Vinha a passos lentos pelo quarteirão da rua naquela madrugada. Fiz questão de descer do táxi uma esquina antes pra poder cumprimentar certo vigia noturno, que em sua ingênua ignorância, tem sempre istórias misteriosas pra contar – noturnas cheias de suspense, istórias de quem está acordado enquanto os outros dormem.
Também me dá certo prazer essa pequena caminhada na brisa, porque tem um pé de jasmim num certo jardim que me trás um perfume inebriante. E enquanto não chego a meu portão, vou olhando os jardins na alameda entre discretas luzes, que é até poético pra alma.
Entrementes, sinto a sensação de que já estou em casa; e ao mesmo tempo sinto aquela solidão da rua deserta, uma solidão da busca de que algo aconteça, mudando destinos, e de que viver é ser um dia tragado pelo inevitável silêncio.
No que pese a solidão humana, há seres presentes e bem acordados no breu da noite. Aquele gato malhado, por exemplo, está sempre no muro de espreita fiscalizando o tempo. Com seus olhos de vidro, nos olha incisivo na sua incontrolável curiosidade.
Quando parei pra cumprimentar o guarda noturno, ouvi umas resenhas suas e segui a passos lentos, e olhei pro gato que também sentia o cheiro de jasmim no ar.
Ao adentrar no prédio dispensei o elevador. Do andar onde moro fiquei no parapeito olhando mais um pouco a rua. O céu não estava de brigadeiros, estava de diamantes.
Esses diamantes inalcançáveis que nós tentamos compreendê-los, e eles insistem em nos confundir com sua grandeza diante de nossa pequeneza. Chamou-me a atenção àquela florada de hortênsias de uma casa vizinha; é claro que já tinha visto estas flores antes, mas, hoje elas me surpreenderam; pareciam dizer que a noite é acordada e que nem todos dormem.
Olhei do outro lado do quarteirão aquele prédio novo; pressenti que outros surgirão, e com eles, essa paz florada da noite sumirá, e eu também sumirei daqui. Senti o que me prende a esse lugar: essas alamedas e esses jardins.
Ao lado na antena de TV, estava uma coruja solitária e imperiosa de olhos cintilantes, se sentindo a própria rainha da noite. Não sei se de papo cheio, ou se decepcionada por não ter caçado nada.
O gato e a coruja – um mamífero e uma ave, os dois têm uma cara parecida. A coruja então me deixava intrigado; não sei se ela ainda ia caçar. Talvez estivesse cansada; na verdade ela estava meditativa admirando a deusa da noite Lilith, ou da lua negra da sedução e ânsia da liberdade.
Aquela que segundo a tradição judaica Deus a fez de barro, à noite, criada tão bonita e interessante que logo arranjou problemas com Adão (Diferentemente de Eva não se conformou com a submissão ao homem, e segundo os astrólogos Lilith apareceu na influência de plutão no período de 1914 a 1938 nas lutas pela libertação feminina).
Mas é quase certo que a corujinha estivesse esperando o dia se aproximar para tirar o time de campo. Seu relógio não permite abandonar a noite. Quanto a mim, bicho humano, recolhi-me aos aposentos pensando nela, nas hortênsias e no gato.
Quando o dia amanheceu, a criançada de folga no feriado estava logo cedo na rua na maior curiosidade, com aquela ave de rapina caída no chão eletrocutada pela fiação.
A coitadinha errou nos cálculos do vôo e se acidentou. Também fui ver a fatalidade e percebi que era uma coruja. Cogitava que ela não tivesse comido… Que se desesperou quando o dia amanheceu e com fome fugia do Sol.
Não fiquei muito certo se era a coruja da antena de TV da noite passada, mas, ali estendida no chão, imóvel, parecia ela. Apesar da luz brilhante de uma manhã de verão, que por sinal as corujas detestam, para ela estava tudo escuro, eternamente escuro.