– “Minha consciência me obriga a dizer algo quando não concordo”, disse ele. Não, não foi no século passado, foi há pouco tempo numa palestra que deu no Rio de Janeiro. Nesses tempos em que, segundo ele, “a mentira tem pernas longuíssimas”. E nós assistimos no vídeo, ao vivo, a “justiça” garantindo o “direito” à mentira.
Eduardo Galeano tem 65 anos. “As Veias Abertas da América Latina”, seu livro mais famoso, que já ultrapassou os quatro milhões de exemplares, incendiou de desejo libertário e ardor revolucionário os jovens corações da geração dos anos sessenta do século vinte. Uma espiral de transformação do mundo cruzava os céus do planeta. Quebra de costumes, de impérios, de fronteiras. Euforia de vida. Expansão de espíritos. Crash do square. Efusão dos sentidos. Impulso para transgredir. Espírito heróico.
Esse uruguaio começou cedo como repórter percorrendo as entranhas da América Latina, driblando malárias. Sendo perseguido pelas ditaduras do Uruguai e a da Argentina. Se posicionando diante das contradições do mundo. Insistindo em acreditar na evolução do raça humana. Escrevendo livros, entre eles, os três volumes de “Memória do fogo”, de 1984, onde conta a história das Américas e dos mitos da criação do mundo.
Em suas andanças viveu um tempo exílio no Rio de Janeiro, acolhido na casa do escritor Arthur Poener, seu amigo. Poener participou da entrevista especial do Caderno B do Jornal do Brasil. Uma conversa com várias pessoas nos moldes da antigo Pasquim, do mestre Ziraldo que é o editor do caderno B, do JB. Uma conversa que conversa em vez de interrogar, que escuta, percorre atalhos. Encara temas chamados polêmicos porque proibidos.
Eu também não tava lá, mas me peguei a pescar palavras de Galeano. E para fazer esse texto, “tecer essa teia, estou procurando “palavras que sejam melhores do que o silêncio” para descortinar nesgas do universo onde vive e vibra com seus sessenta e cinco anos Eduardo Galeano vencendo cada dia a “maré de egoísmo que ameaça o ser humano” desde que foi decretada a pena de morte à Utopia. Desde que, descongelada, a Guerra esquentou, se espalhou, contaminou todo planeta.
Não é todavia verdade que está tudo dominado. Nem tão pouco que a civilização humana esteja garantida. Esteja nas pautas de notícias, nas capas de revistas. Nos segredos de estado. Nos cofres dos bancos. Nas caixas pretas. Nas reuniões da ONU.
Numa boa roda de papo tudo vira pelo avesso. Vale contar histórias. Filosofar. Enfeitar. Afiar a língua, liberar o espírito. Mas numa roda de papo com um entrevistado é melhor ligar os ouvidos, guardar as unhas, desarmar os espíritos. Pegar de novo o gosto pelo outro.
Com o aval de 40 anos de amizade, Poener, o amigo escritor entra na cena perguntando qual o papel de Vovô Catarino na história de Galeano. E conta para a galera que, em 1968, os dois amigos foram juntos ao morro do Sossego conhecer a Quimbanda. Garante que deve sua sobrevivência aos porões das ditaduras “a uma poderosa guia de metal que Vovô Catarino me deu porque quando fui preso nenhum de meus capitores quis tocar naquilo”.
A provocação tava feita, Galeano aceita desafio
– “Eu morava na casa do Poener e para mim era um enigma que os antropólogos cariocas se interessassem tanto por temas apaixonantes como a vida dos Ororos mas não se sentissem atraídos pelo som dos atabaques a cinco quadras de suas casas.
Fui pesquisar então o segredo da vida oculta dos cariocas. Achei apaixonante que aquelas cerimônias , vindo da África, tivessem se nacionalizado tanto que os pontos fossem cantados em brasileiro e não nas línguas de origem como na Bahia. Fui também a terreiros no Morro Dois Irmãos. Me atraiu a figura de Exu, que era deus e diabo ao mesmo tempo, parecido com a vida onde tudo é misturado.
A terra é uma combinação incessante de céu e inferno. As fronteiras sobre o bem e o mal só estão claras na cabeça de George W. Bush, que da vida sabe tanto quanto eu sei das viagens interplanetárias. Em Cuba o equivalente de Exu é Legua, com a vida na cara e a morte na nuca, uma divindade perfeita para gente de carne e osso, que precisa de consolo mas também de vingança.”
Sobre o abismo entre a palavra e o fato. Descrença na palavra dos políticos no Brasil
– “ Isso é uma tradição latino-americana ruim. As tradições são importantes, mas existem algumas que não são boas. Meus amigos antropólogos ficam furiosos comigo mas não considero que a identidade dos povos deva ser colocada num museu. Há tradições ancestrais africanas, por exemplo, que se baseiam na herança cultural de que a filha seja propriedade do pai, o que resulta no corte do clitóris das mulheres.
Os seres humanos não estão terminados, ainda estão sendo feitos, e temos esperança de que o destino não seja fatalidade. Na tradição latino-americana há então esse divórcio entre a palavra e o ato. Quando uma diz sim, a outra diz não.
A palavra e o ato não se reconhecem, quando se cruzam na rua não se cumprimentam. Na América Latina, dizer uma coisa e fazer outra é quase uma virtude, embora isto tenha conseqüências catastróficas. Eu falo muito da palavra porque todo meu ofício é uma fé na palavra. Segundo meu mestre Onedtti, o desafio de um escritor é encontrar palavras que sejam melhores do que o silêncio.”
Palestra no Rio: – “Minha consciência me obriga a dizer algo quando não concordo” :
– “A origem de minhas convicções é minha formação marxista. Marx, como seguidor de Hegel, acreditava que a contradição é o motor da história. Depois chegou Stalin e disse: “A contradição é heresia”. Ainda tem muitos militantes de esquerda com essa concepção religiosa da luta política: o mal é aquele que diz não quando o partido, o governo, ou a maioria diz sim.
A confusão que ainda persiste entre unidade e unanimidade fez danos horrorosos ao movimento revolucionário mundial. Tem sentido uma revolução que não reivindique a diversidade? A única militância possível é aquela nascida da liberdade de consciência. A militância nascida do dever e da obediência é inimiga da transformação do mundo. Se for para repetirmos o que está é melhor ficarmos em casa, porque em matéria de repetir a direita tem mais experiência e melhores quadros.”
Discordâncias com os governos de esquerda
– “A causa ecológica não é popular entre a esquerda. O pessoal prefere morrer de contaminação do que morrer de fome. Não dão muita bola para os danos irreversíveis que estão sendo causados no meio ambiente.”