Perto da meia-noite de 24 de dezembro, o melhor da festa de Natal da família da enfermeira Maria José Menna Barreto, 64, estava prestes a começar: para as crianças, a distribuição dos presentes pelo Papai Noel; para os adultos, as sobremesas saboreadas todos os anos, rabanada, musse e "surpresa de abacaxi".
O Papai Noel não apareceu e muita gente foi embora antes de comer os doces: mãe e filha invadiram o salão de festas de um prédio em Copacabana, zona sul do Rio. Elas soltaram um cão (seria da raça weimaraner) e aterrorizaram as crianças. A mãe, Palmyra Medeiros Rocha, hoje com 70 anos, gritava "acaba essa festa!; fora, fora!", contaram testemunhas.
Com a corda da coleira, a filha, Denise Medeiros Rocha (de idade desconhecida), chicoteou chão, móveis e paredes. Berrou para o genro da anfitriã, o vendedor Cláudio Costa Ferreira, 40: "Negro safado! O seu lugar não é aqui, é na senzala! Tem é que voltar para a senzala!".
No último dia 11, nove meses depois, o 5º Juizado Especial Cível do Rio de Janeiro acatou pedido de Maria José, moradora do oitavo andar do edifício da rua Santa Clara, e condenou por danos morais a vizinha do 14º, Palmyra. A ré tem até a quinta-feira para recorrer.
A juíza Luciana Santos Teixeira a condenou a pagar R$ 14 mil (40 salários mínimos). É a indenização máxima nesse tipo de juizado, conhecido como de "pequenas causas".
Cláudio Ferreira prepara ações criminal e indenizatória contra as mulheres. Segundo o Código Penal, a pena para o crime de injúria racial é de reclusão de um a três anos e multa.
A Lei do Racismo se aplica a atos distintos, como impedir o acesso a empregos, escolas e lojas por preconceito de raça. O Tribunal de Justiça do Rio contabiliza 11 processos abertos neste ano com base na lei.
À Justiça, Palmyra Rocha confirmou o que qualificou como "comportamento reprovável" de sua filha, mas negou que a tenha apoiado. Testemunhas dizem que a mãe ria e bradava "é isso mesmo" a cada impropério pronunciado por Denise.
Como a autora da ação não encontrou o endereço de Denise Rocha, decidiu ingressar com processo contra a mãe.
As provas, diz a juíza, não deixam "dúvidas de que a ré apoiou, participou e incentivou as ações da filha. (…) Por meio de atos humilhantes e racistas, a ré agrediu a honra e dignidade da autora, desrespeitando seus fundamentais direitos".
Noite infeliz
O Natal tinha tudo para ser especial. Após três anos fora, uma das duas filhas de Maria José tinha ido à cidade com a família. A moradora alugou o salão no playground porque a saúde de sua mãe, de 95 anos (ela morreu há duas semanas), não recomendava agitação no apartamento. Apareceram cerca de 50 parentes e amigos.
Pelas 22h30 caíram sacos plásticos com água no playground. Nenhum atingiu os freqüentadores em cheio, mas crianças se molharam. Os sacos teriam sido arremessados do apartamento de Palmyra.
Uma hora depois ela e Denise desceram, irritadas, embora a família não tivesse levado aparelho de som para a festa. Com o cão solto, as chibatadas e os gritos, a vizinhança correu à janela para ver o que acontecia.
Adultos pediram calma e citaram o susto das crianças –Denise seria médica. Quando Cláudio surgiu, ouviu gritos de "escravo" e de "seu lugar não é aqui", entre outros. Ele é negro e sua mulher, a professora universitária Ana Paula, branca. Ela é filha de Maria José.
Quando Denise xingou seu padrasto, a filha de dez anos de Ana Paula, do primeiro casamento, começou a chorar e a tremer (o casal tem um menino de dois anos). Maria José, a sogra do vendedor, passou mal.
Cláudio foi à polícia. A parente que se vestiria de Papai Noel também –não teve tempo de entregar os presentes.
O Natal foi tão traumático para a mãe do vendedor que, até hoje, eles não tocam no assunto. "As pessoas têm que pensar dez vezes antes de cometer algo parecido", ele diz.
Sua sogra mora há 30 anos no prédio e diz que não guarda "raiva nem rancor" da vizinha do 14º. Moradores assinaram manifesto de desagravo a ela e a sua família. "É preciso dar um basta nessa selvageria e discriminação racial", diz o texto.
Outro lado
Condenada a pagar indenização pelos acontecimentos da noite natalina, Palmyra Medeiros Rocha não quis dar entrevista à Folha. "Eu não gostaria de fazer comentário nenhum sobre isso", afirmou. "Deixa esse povo falar o que quiser."
Palmyra não quis informar como a reportagem poderia encontrar a sua filha, Denise. "Ela está muito doente. Não tem condições de conversar com ninguém", afirmou.
A acusada também não quis dizer se vai recorrer da condenação no Juizado Especial Cível e recomendou a leitura da sua contestação no processo.
O texto de duas páginas sustenta que Palmyra sofre "retaliação notória" por ter sido síndica do prédio (na definição dela, o "pecado de todos os pecados") onde ela e sua acusadora moram em Copacabana.
Participação
Palmyra afirma que não teve participação nos fatos mencionados, mas "que a sua atuação no episódio foi a de, tão-somente, retirar a filha do salão de festas do condomínio".
Sua versão é a de que sua filha é "portadora de doença incurável e que gera atitudes que deixam a mãe em total desconforto". A contestação não esclarece qual seria a doença da filha.
"O que não pode acontecer é ser a ré condenada por comportamento reprovável de sua filha", acrescenta a contestação. A advogada da ré ainda escreve que a sua cliente "compreende a dor sofrida pela autora [a vizinha Maria José, sogra do homem xingado]".
Palmyra não quis confirmar se sua filha é médica.